Vila Dias tapa os buracos enquanto espera decisão do tribunal

Câmara quer usar direito de preferência na compra da vila, respondendo aos apelos dos moradores que pedem reabilitação urgente
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Isaltina sai de casa carregando um balde com cascas de banana e batatas, o seu lixo que em breve se vai transformar em estrume na horta que fica no morro das traseiras. "Tive muitos tomates este verão, tenho feijão, marmelos, batatas, daqui a nada já vou plantar as couves para o natal", conta. Tem 65 anos e mora na Vila Dias, em Xabregas, na zona oriental de Lisboa, há quase 50. Aqui casou e criou os dois filhos. Na Vila, Isaltina conhece toda a gente, os mais velhos e os mais novos. Gosta de trabalhar na horta e de pôr os pés de molho na fonte de água fresca. Ao fim do dia, traz a cadeira para a rua e conversa com a vizinha. "Somos uma família", diz.

Mas nem tudo é assim tão tranquilo neste bairro. Respondendo aos apelos da associação de moradores, a Câmara Municipal de Lisboa avançou ontem com uma ação judicial para exercer o direito de preferência e assim anular a compra da Vila Dias, realizada em abril, por um investidor privado.

Construído em 1888, o núcleo residencial esteve praticamente abandonado nas últimas três décadas. As antigas proprietárias não faziam obras nas habitações e muitas pessoas nem contratos de arrendamento tinham. "Fomos nós que fomos fazendo as obras, que fizemos a cozinha e a casa-de-banho, tínhamos só uma pia e mais nada", conta Isaltina. No início, pagava 75 escudos de renda por uma casinha pequena, com dois quartos onde mal cabiam as camas, depois pagou três euros e agora paga 53 euros. "A mim não me interessa quem são os donos, desde que não me aumentam mais."

Desde 2012, começaram a surgir investidores interessados no bairro. Nessa altura foram remodeladas algumas casas e feitos novos contratos de arrendamento. Há dois anos, 18 pessoas que moravam nas casas em pior estado ("eram barracas") foram realojadas pela câmara noutro local da freguesia. José Morais Rocha tem dado a cara pela Sociedade Vila Dias, que este ano terá adquirido o bairro por 1,9 milhões de euros, prometendo aos moradores um investimento de 5 milhões de euros na sua reabilitação integral - com casas para estudantes e alojamento local.

Essas obras começaram em junho mas não correspondem ainda ao projeto apresentado e que inicialmente tinha conquistado muitos moradores. Uma dezena de homens tem vindo a rebocar e pintar algumas fachadas, arranjando escadas, telhados, canalizações. "Fazemos o que é possível, não será o suficiente, mas já é um começo", explica António Pedro, 65 anos, residente na Vila Dias há 45 e um dos homens que trabalha nas obras. Os rebocos são visíveis em muitas das casas da única rua que constitui a Vila Dias, que vai do Café Ângelo ao parque infantil.

Pelo meio, uma série de casinhas degradadas onde moram cerca de 400 pessoas, roupa estendida ao sol, uma floresta de antenas de televisão plantada nas janelas do primeiro andar.

Obras a sério ou de fachada?

Mas há quem não acredite nas boas intenções dos novos proprietários. "Têm 5 milhões e põem meia dúzia de velhotes a tapar buracos?", lança Maria do Céu Dias, que mora na Vila Dias desde que nasceu, há 49 anos e é a presidente da Associação de Moradores das Vilas Operárias do Beato. Ela e o marido, José Dias, têm sido as vozes de protesto que mais se têm feito. O seu prédio é um dos que mais necessita de obras. "Mas não dessas obras de fachada que eles estão a fazer, isto precisa de obras a sério", argumenta José, claramente irritado, abrindo a porta do prédio: corredores estreitos, paredes esburacadas, escadas de madeira podre, traves de madeira a segurar madeiras, um pátio interior onde no inverno chove como na rua, a humidade que se pressente em toda a estrutura.

Da janela vê-se a linha do comboio. As paredes estão a cair e lá em baixo avista-se uma fossa para onde escorrem os esgotos de muitas daquelas casas. Ratos e cobras são visitas frequentes. Estamos ainda muito longe da Lisboa que atrai turistas, apontada como uma das cidades mais bonitas e mais "trendy" da Europa.

"O que nós pedimos é simples: rendas sociais para todos", afirma José Dias. "O que nós temos aqui não é só um problema de habitação, é um problema social." Naquelas 161 casas (das quais 7 estão vazias e 17 devolutas, com paredes de cimentos no lugar das portas para não serem ocupadas indevidamente), há pessoas que pagam cerca de 50 euros de renda e outras que pagam mais de 200 euros - e destas também há muitas que deixaram de pagar porque não o conseguem fazer.

Além disso, os contratos mais recentes são de um e dois anos e os moradores temem pelo seu futuro. "Se viessem de boa fé, faziam contratos mais alongados. Porque as pessoas moraram aqui a vida toda ou então são filhos dessas pessoas, e não se querem ir embora", diz José Dias, insinuando que há interesses imobiliários por trás do negócio e que o objetivo é expulsar os moradores. Foram estas dúvidas que os levaram a pedir a intervenção da Câmara de Lisboa. "O que nós sabemos é que com a Câmara ninguém será expropriado."

Esclarecer a situação

A decisão será tomada pelo tribunal mas na reunião da Assembleia Municipal, na terça-feira, a presidente Helena Roseta explicou que a transação foi ilegal porque não foi respeitado o direito de preferência da Câmara, pelo que é necessário esclarecer a situação. "O facto de se interpor uma ação não quer dizer que não haja diálogo entre as partes", diz a autarca, sublinhando que o mais importante é resolver a "situação muito degradada em que algumas daquelas casas estão" e o "sofrimento de anos e anos dos moradores da Vila Dias com proprietários anteriores".

O DN tentou obter uma reação dos proprietários da Vila Dias mas até à hora de fecho não conseguiu obter uma resposta.

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