VII - A morte do conde Andeiro e a revolta popular

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Aquando da Primeira Revolução Portuguesa, estando Portugal a viver uma situação político-social incerta recheada de perigos iminentes e enquanto os protagonistas mais relevantes se posicionavam actuando de diversas formas em relação aos seus potenciais adversários, a rainha D. Leonor tomou providências por saber que D. João, Mestre de Avis, era muito amigo do seu irmão infante D. João, preso em Castela.

Temendo que pudesse aumentar a sua influência em Lisboa, caso o rei de Castela quebrasse o Tratado de Salvaterra de Magos, a perspicaz rainha promove-o a fronteiro da Comarca de Entre-Tejo-e-Odiana, ordenando a sua partida para aquela zona de habituais reacendimentos de conflitos, afastando-o assim dos centros de decisão.

A caminho do Alentejo, estando a pernoitar na Aldeia de Santo António, a três léguas de Lisboa, o Mestre de Avis, em virtude de não ter obtido o apoio de todos aqueles a quem confidenciou, pedindo segredo, os meandros do plano concebido por Álvaro Pais, receando ter sido descoberto e denunciado, decidiu regressar à capital, no dia seguinte, ordenando ao escudeiro que se adiantasse e dissesse a Álvaro Pais para se preparar a fim de fazer aquilo que sabia.

Ao entrar nos paços da rainha D. Leonor, contrariando o porteiro, ao quebrar as regras protocolares habituais, impôs a sua presença e a dos conjurados armados no interior da câmara e, em resposta à interpelação de sua cunhada, replicou que regressara por não ir desembargado como devia.

Enquanto o escrivão de Puridade, João Gonçalves, por ordem da rainha, consultava o Livro dos Vassalos para satisfazer a vontade do Mestre, este, despercebidamente pede ao conde de Barcelos, D. João Afonso Telo, irmão da rainha, para se ir embora, confidenciando-lhe que queria matar o conde Andeiro.

Após manifestar o seu desejo de pretender ajudá-lo nessa façanha, o irmão da rainha e muitos dos convivas começam a abandonar o aposento.

Ao reparar na troca de olhares e nos sinais comprometedores, o conde Andeiro, que temia o Mestre de Avis, mas mesmo assim viera assistir ao saimento real contrariando o conselho e a vontade de sua mulher, recordou-se dos boatos e dos avisos recebidos.

Não tardou muito a que a sua suspeita inicial se transformasse em temor e passasse à fase de descontrolo. Assustado e sob pressão, incapaz de raciocinar objectiva e serenamente, cometendo um erro fatal, pede aos seus vassalos e à sua guarda pessoal para se irem armar e regressar com a máxima rapidez.

Assim que partem, arrepende-se profundamente porque constata que tinha ficado sozinho na câmara rodeado dos homens do Mestre.

Este, recusando mais uma vez o seu convite para jantar, despede-se da rainha e conduz o conde Andeiro a uma sala contígua. Após breve diálogo, desfere-lhe um golpe na cabeça com o cutelo. Ferido, ao procurar encaminhar-se em direcção à câmara da rainha, é morto com uma estocada certeira de Rui Pereira.

É sobretudo a partir desse momento fatídico que podemos admirar a genialidade do plano de Álvaro Pais.

Seguindo o guião, o Mestre de Avis manda encerrar as portas do paço e ordena ao pajem, Gomes Freire, que fosse à pressa pela cidade, gritando em voz altissonante:

"Matam o Mestre! Matam o Mestre nos paços da rainha! Acorrei ao Mestre que o matam!"

Quando este chega à casa de Álvaro Pais, conforme estava previamente combinado, o aposentado chanceler-mor, que estava montado no cavalo e prestes para a acção, acompanhado de aliados e amigos, junta-se ao pajem e, fazendo uma grande algazarra, vai pedindo, pelo percurso até ao paço, a ajuda popular apelando aos brados:

"Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre, porque é filho do rei D. Pedro!"

"Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre porque o matam sem qualquer razão."

A população que vivia receosa e em estado de alerta, por saber que o Mestre havia sido preso e quase executado por ordens da rainha e também por odiá-la, deixa-se, rápida e facilmente, ser manipulada pela astúcia de Álvaro Pais, tal como o próprio previra.

Repicam os sinos e a população revoltada e em alvoroço, que engrossava cada vez mais a ponto de não caber nas ruas principais, armava-se como podia correndo em direcção aos paços da rainha para salvar o Mestre antes que o matassem. Na correria desenfreada contra o tempo, uns ultrapassavam os outros querendo estar todos na dianteira.

E, se porventura alguém perguntasse quem matava o Mestre, havia quem respondesse com absoluta certeza:

"O conde Andeiro por mandato da rainha D. Leonor."

Quando os populares ofegantes chegam ao paço e o cercam deparam com as portas encerradas, prova evidente da consumação do assassinato do Mestre.

Oh, que pena, diziam, chegámos atrasados!

Face à constatação do desenlace fatal, a população enfurecida protestava exteriorizando em alta voz a sua tristeza e descontentamento.

Naquele ambiente de impotência, carregado de cólera e revolta, para tudo se exacerbar ainda mais bastou alguém gritar:

"Vingança! Vingança!"

Ao grito da exigência de retaliação todos os olhos se viraram para a entrada dos paços da rainha D. Leonor.

Surgiram vozes a pedir que se quebrassem as portas, trouxessem escadas, lenha e tochas, e dizia-se bem alto:

"Matemos os traidores!"

Uns acarretavam feixes de lenha, outros traziam carqueja para atear o fogo e queimar os muros do paço.

Quando a população amotinada avançava para provocar o incêndio e matar o traidor do conde Andeiro e a aleivosa, os conjurados aflitos, incapazes de travar o descontrolo da situação, procuravam refreá-la dizendo do alto das janelas:

"O Mestre está vivo e o conde Andeiro morto."

"Pois se está vivo que apareça, porque queremos vê-lo", respondia.

Foi nessa altura que apareceu D. João, Mestre de Avis, diante de uma grande janela, que dava para a rua e disse:

"Amigos, apacificai-vos, porque eu estou vivo e são graças a Deus."

Os revoltosos, aliviados e cheios de prazer, comentavam:

"Oh que mal fez, porque matou o traidor do conde e não matou logo a aleivosa com ele. Ainda lhe há-de fazer mal. Oh aleivosa! Já nos matou um senhor e agora nos queria matar outro" (texto com citações livres da Crónica D. João I de Fernão Lopes).

Anunciada a morte do conde Andeiro, os ecos do choro chegam ao interior do paço e as pessoas aflitas, receando serem também executadas, fogem pelas janelas, por escadas e telhados, cada qual como melhor sabia e podia.

Estando os companheiros do conde Andeiro de regresso, em cumprimento das ordens recebidas, foram avisados para desistirem de ir ao paço, porque podiam não escapar com vida.

A corajosa rainha, após lamentar a morte do seu mártir e leal servidor, encarando o problema com frontalidade, manda perguntar ao Mestre se teria a mesma sorte.

Responde-lhe o Mestre que não temesse, pois ele tinha regressado apenas para matar o conde, porque o merecia.

Será que, com a eliminação do bode expiatório, os problemas vão ficar resolvidos?

Historiador
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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