Era uma espécie de neblina, mas de fumo, que ontem cobria toda a costa do distrito de Leiria, sobretudo entre São Pedro de Moel (Marinha Grande) e a praia do Osso da Baleia (Pombal), varrida pela ventania de fogo na tarde-noite de domingo, 15 de outubro. O incêndio que começou na praia da Légua, em Pataias, foi descendo pela costa à medida que destruiu uma área calculada em 80 por cento do Pinhal de Leiria, a mata nacional transformada agora em cinzas e lume, dor e perda.."Não perdemos vidas, mas perdeu-se muito da nossa vida", diz ao DN Ana Paula Silva, horas depois de regressar a casa, em Vieira de Leiria. Na véspera, quando percebeu a dimensão da nuvem de fumo que se aproximava, lembrou-se da aflição que já vivera em 2003. Preparou uma pequena mala com roupa e meteu-se no carro com a mãe, de 82 anos, em direção à Base Aérea de Monte Real, onde passaram a noite. Quando o fogo passou ao largo da Praia da Vieira, do Pedrógão, seguindo para a Praia do Osso da Baleia, já na fronteira do concelho de Pombal com o da Figueira da Foz, estavam a salvo, mas de coração apertado. "Ouvíamos dizer que tinham ardido casas, fábricas, escola, parque de campismo, afinal salvou-me muita coisa, mas é desolador". Só quando voltaram à Vieira tomaram consciência de que a terra já não era a mesma. A escola salvara-se, afinal, mas o fogo destruiu casas, oficinas, empresas, um parque de campismo..Aldeias evacuadas.Entre a cortina de fumo que desceu ontem sobre toda a região de Leiria, percorremos a estrada Atlântica no sentido inverso ao do fogo, horas antes. Só assim foi possível perceber a pertinência de ter sido ativado o Plano Municipal de Emergência de Pombal, que levou à evacuação de algumas aldeias da freguesia do Carriço, próximo da praia do Osso da Baleia. Os populares foram acolhidos em duas coletividades da freguesia, e acabaram por regressar às suas casas (em Alhais, Fontinha, Silveirinha e Claras) durante a manhã, à exceção de duas famílias cujas casas arderam..É ali, naquela freguesia, que reside uma das maiores preocupações da população e bombeiros: as reservas de gás natural. "Mas lá havia muitos bombeiros à espera, conseguiram controlar bem o fogo", ouve-se à porta da Junta de Freguesia do Carriço. No trajeto, até à rotunda de acesso à praia, ainda ardem troncos. A GNR faz a gestão da via, não há sinais de casas ardidas, sinal de que a proteção chegou a tempo. Mas nem toda a Mata do Urso teve a mesma sorte, como se percebe ao longo do percurso na estrada Atlântica, cuja ciclovia está quase totalmente danificada. Aquele era um caminho muito utilizado pelos amantes do ciclismo, envolto numa paisagem verde, que se agigantava ao longo da costa, quebrada por outra igualmente bela, como a da Lagoa da Ervideira, a caminho da Praia do Pedrógão, o outro Pedrógão do distrito que agora também arde, quatro meses depois do interior. Seguimos nessa direção. Sabe-se agora que a mata do concelho de Leiria se reacendeu entretanto, e apanhamos a estrada de Vieira de Leiria, no concelho da Marinha Grande. Foi aí que o fogo abrasou casas de habitação, uma fábrica de cartão, uma oficina de automóveis. Logo no lugar da Bajanca um grupo de populares concentra-se junto ao café Anita, salvo "por milagre", tal como um Lar de Idosos que chegou a ser evacuado. É lá que mora agora Alberto Prazeres, 83 anos, antigo guarda florestal. Ainda não sabe que o fogo lhe queimou a casa, uma das moradias dos guardas que eram caraterísticas de todo o Pinhal que o rei D. Dinis mandou plantar, há 700 anos, e que quase desapareceu em 24 horas. No lugar e Ribeiro da Tábua encontramos os filhos, Vitor e Alfredo, atarefados a limpar o pouco que se salvou, numa arrecadação traseira. Moram em Lisboa e Mafra, respetivamente, e na véspera souberam "pelo facebeook" que a Vieira estava a arder. Quando chegaram à terra, na manhã seguinte, deram com os escombros. "Estava aqui toda a nossa história, toda a nossa infância", lamenta Vítor..Os avisos à Proteção Civil.Carlos Feijão está à porta de casa, ou "do que resta dela", confortado por vizinhos e amigos. Lá dentro, mal se respira. Cá fora, Carlos sufoca de revolta: "há cinco anos que o terreno aqui ao lado não era limpo. Nunca se conseguiu identificar o proprietário. Eu fui limpando à beira, mas sabia que estava aqui um barril de pólvora. Por isso há um ano fui à Junta, à Câmara, à Proteção Civil, à GNR. Todos empurraram o assunto. Vieram tirar umas fotografias. Até hoje". Ou melhor, até ontem, quando Carlos pegou numa mangueira para apagar as fagulhas que caiam na frente da casa. "Quando dei por ela, já estava tudo a arder na parte de trás". Apagou o que pôde, sem sucesso. Quando os bombeiros finalmente apareceram, traziam "um carro com 400 litros de água. E a bomba de água que existe aqui na rua estava tamponada". Ao lado, a oficina do vizinho Filipe Pereira está lotada de carros. A maioria ardeu. Como aconteceu com uma fábrica de cartão, na zona industrial..É na Praia da Vieira, a poucos metros do mar, que se mostra a nu a destruição do parque de campismo. Desde 2012 que um conjunto de bungalows formava uma espécie de bairro, com canteiros de ervas aromáticas, pequenos terraços e jardins. Francisco Nunes, 73 anos, enxuga as lágrimas enquanto olha para os destroços. "Passava mais tempo aqui do que em Tomar, percebe?". Foi ali que viu crescer os filhos e os netos, é o campista mais antigo do Parque. "Se eu fosse novo, ainda tinha tempo de reconstruir tudo. Assim não sei". Aos poucos, chegam os outros vizinhos do parque, que foi evacuado antes do fogo se entranhar num aglomerado de eucaliptos, ali à entrada. "Alertámos tanta vez a Proteção Civil", conta Manuel Branco, que pela segunda vez vê destruída a "segunda casa". A primeira foi em 2012, depois do temporal. "Agora não sei se ainda tenho forças para isso".