Vidmantas Šakalys: "Em 15 anos vai surgir o primeiro órgão humano impresso em 3D"
Qual é o atual "estado da arte" da impressão de órgãos em 3D? O que já conseguimos "produzir"?
A bioimpressão de órgãos em 3D é um campo médico em rápido crescimento, mas ainda não chegou ao ponto de poder imprimir órgãos humanos totalmente funcionais e transplantáveis. Embora haja relatos de tecidos bioimpressos que foram transplantados em animais com êxito, o salto para o transplante humano ainda está no futuro. A complexidade biológica do transplante de órgãos, a necessidade de compatibilidade e de funcionalidade a longo prazo são os desafios em que os investigadores ainda estão a trabalhar. A vascularização (criação de vasos sanguíneos) dos tecidos bioimpressos continua a ser um grande problema. Sem uma rede vascular funcional, é difícil manter os órgãos impressos em 3D vivos e funcionais.
O que já é possível imprimir em 3D?
Modelos de tecidos e órgãos, que ajudam os cientistas a compreender melhor a respetiva função e os mecanismos da doença; órgãos em miniatura, muitas vezes referidos como organóides, usados para testes de medicamentos, modelação de doenças e tratamentos personalizados; modelos cirúrgicos, como réplicas de órgãos ou ossos específicos para cada paciente - os cirurgiões utilizam-nos para planeamento e prática cirúrgica; implantes dentários - a impressão 3D é amplamente utilizada no campo odontológico para criar coroas dentárias, pontes e até implantes dentários personalizados; próteses e implantes ortopédicos que são impressos em 3D para proporcionar maior conforto e funcionalidade aos pacientes; aparelhos auditivos, que são muitas vezes personalizados usando tecnologia de impressão 3D, tornando-os mais confortáveis e eficazes; dispositivos de ministração de medicamentos, uma vez que a impressão 3D permite a criação deste tipo de dispositivos personalizados; instrumentos cirúrgicos personalizados; guias específicos para cada paciente, usados em cirurgias ortopédicas para garantir a colocação precisa dos implantes.
Que órgãos, se os houver, foram implantados em seres humanos? E nos animais?
Embora tenha havido transplantes de órgãos impressos em 3D em animais, e alguns progressos na produção de tecidos mais simples para transplante, como enxertos de pele, não estamos na fase em que órgãos complexos - como corações, fígados ou rins - possam ser rotineiramente impressos em 3D e transplantados em seres humanos. O sucesso da impressão 3D e do transplante de órgãos humanos complexos continua a ser um desafio, devido a vários fatores, como a vascularização dos tecidos necessária para o fornecimento adequado de sangue aos órgãos, crucial para a sobrevivência e bom funcionamento dos órgãos; assegurar que o sistema imunitário do recetor não rejeita os órgãos impressos em 3D e que são compatíveis com o corpo do recetor; replicar a complexidade de tecidos com vários tipos de células, e de intrincada disposição. A viabilidade a longo prazo dos órgãos impressos em 3D, bem como a sua capacidade de funcionar e se integrarem no corpo do recetor, estão ainda a ser investigadas.
Também existem considerações regulamentares e éticas que têm um forte impacto no desenvolvimento e teste de órgãos impressos em 3D. A utilização da bioimpressão em animais reflete os progressos realizados nas aplicações humanas. Os animais têm sido utilizados como modelos experimentais para desenvolver e testar órgãos e tecidos impressos em 3D. Isto proporciona conhecimentos e técnicas aplicáveis à medicina animal e humana. Em alguns casos, os animais receberam tecidos bioimpressos e órgãos simples para transplante, que servem para estudar a viabilidade e funcionalidade de órgãos impressos em 3D. Os problemas de vascularização, complexidade dos tecidos e viabilidade a longo prazo ainda são significativos quando se trata de bioimpressão de órgãos complexos para animais, do mesmo modo que o são na medicina humana.
Em termos leigos, o que distingue o processo de impressão da Vital3D?
O processo de bioimpressão da Vital3D baseia-se na utilização da luz laser como ferramenta de impressão. Ao contrário do jato de pulverização de moléculas, este processo usa uma fonte de luz direcionada à biotinta fotossensível para endurecer o material sob a "pressão" do feixe. A estrutura impressa é construída a partir do reservatório de biotinta. Imagine desenhar uma imagem com a caneta, colorindo, peça por peça, toda a imagem. Agora imagine que precisa de pintar a parede ampla - com lápis vai demorar uma eternidade. Para tornar a pintura mais rápida, podemos empregar um pincel mais largo para colorir áreas maiores. Esta é a essência da tecnologia de manipulação dinâmica da luz da Vital3D chamada FemtoBrush. O formato do feixe de laser é alterado em tempo real para representar o lápis, o pincel ou até mesmo formas mais sofisticadas, como elipses. Ao introduzir esta inovação na bioimpressão baseada na luz, esperamos ser capazes de fazer face aos problemas da vascularização na impressão de órgãos. O lápis pode ser tão diminuto quanto um mícron, para imprimir uma menor vasculatura, sendo que mudar para o modo pincel ajudará a acelerar o processo de impressão centenas de vezes, para permitir a impressão de todo o rim em 24 horas.
Qual é a "matéria" a partir da qual esses órgãos são feitos?
A "matéria" de que os órgãos impressos em 3D são feitos é um material biocompatível chamado "biotinta" ou "biomaterial". São materiais especificamente concebidos para aplicações de bioimpressão e são compatíveis com células vivas. Muitos dos materiais utilizados na bioimpressão são biodegradáveis, o que significa que se decompõem no corpo com o tempo, deixando em seu lugar o tecido recém-formado. A escolha do biomaterial depende da aplicação específica e do tipo de órgão a ser impresso. Alguns dos biomateriais e biotintas mais comummente usados na bioimpressão 3D incluem, por exemplo, os hidrogéis, materiais à base de água, que têm uma consistência equiparável à dos tecidos corporais naturais - são amplamente utilizados na bioimpressão, porque podem fornecer uma estrutura para as células e permitir que os nutrientes e o oxigénio fluam. Depois há a matriz extracelular descelularizada (dECM), um derivado de tecidos naturais que foram despojados das suas células, deixando apenas a matriz extracelular - esta oferece o alicerce estrutural e bioquímico para formar células, que é usado como biotinta para construir tecidos específicos. Alguns polímeros sintéticos são também utilizados na bioimpressão e oferecem um controlo preciso sobre as propriedades dos materiais; há polímeros naturais, como o colagénio, que é frequentemente usado na engenharia de tecidos de pele e cartilagem. Além destes materiais, há ainda as suspensões celulares: as células são uma componente crucial da bioimpressão e, muitas vezes, são misturadas com biotintas para criar estruturas semelhantes a tecidos.
As limitações à investigação em células estaminais está a dificultar a impressão 3D de órgãos?
O campo da impressão 3D de órgãos está sujeito a vários regulamentos e considerações éticas, e estes impactam fortemente no progresso e desenvolvimento dos órgãos impressos em 3D. Embora haja regulamentação em vigor para garantir a segurança, padrões éticos e o uso responsável das tecnologias emergentes, estes podem por vezes ser vistos como obstáculos ao rápido progresso. Por exemplo, a investigação com células estaminais (estas são essenciais para a bioimpressão de órgãos complexos, como o rim ou o fígado) suscitou preocupações éticas em muitos países. Estas dúvidas conduziram a restrições do uso de certos tipos de células estaminais para investigação e aplicações terapêuticas, que variam significativamente de país para país. Os investigadores são frequentemente confrontados com problemas quando tentam colaborar a nível internacional, devido a diferenças de regulamentação. As agências reguladoras priorizam a segurança do paciente e exigem rigorosos testes pré-clínicos e clínicos antes de órgãos impressos em 3D poderem ser usados em transplantes humanos. Os regulamentos e considerações éticas aumentam a complexidade e atrasam certos aspetos da bioimpressão de órgãos, mas estão em vigor para garantir a segurança, os padrões éticos e a inovação responsáveis. Os investigadores trabalham hoje ativamente para dar resposta aos problemas de regulamentação e colaborar com as agências reguladoras para avançar no campo da impressão 3D de órgãos.
Mas por que razão não estamos já a imprimir órgãos mais "simples", como ossos, orelhas ou narizes?
Sim, imprimimos, mas é importante notar que todos esses órgãos "simples" são impressos como próteses e, normalmente, não são funcionais em termos de audição ou olfato. São projetados principalmente para restauração cosmética e anatómica. Muitos órgãos que não requerem vascularização (como ossos e implantes dentários) são impressos e usados em operações cirúrgicas. A falta de capacidade de imprimir tecidos com vascularização é um fator-chave, que não nos permite imprimir narizes e orelhas totalmente funcionais.
O processo de impressão da orelha normalmente envolve as seguintes etapas: 1. Digitalizar a orelha saudável do paciente ou de um membro da família, para criar um modelo digital 3D; 2. Projetar a prótese da orelha usando o modelo digital, para combinar com a anatomia e aparência do paciente; 3. Impressão 3D da prótese auricular utilizando materiais biocompatíveis; 4. Fixação da orelha impressa, por implantação cirúrgica, ao crânio do doente ou a um dispositivo ancorado no osso.
A vantagem da impressão 3D, neste caso, é que permite a personalização para combinar com a anatomia única do paciente e alcançar uma aparência natural. Embora as próteses auriculares impressas em 3D não substituam uma orelha totalmente funcional e cultivada biologicamente, podem melhorar significativamente a funcionalidade estética e auditiva.
Imagina um momento no futuro em que será possível imprimir qualquer parte de um ser humano?
Embora a visão a longo prazo de imprimir qualquer parte de um ser humano seja bastante empolgante, é provável que venha a ser um processo gradual, que evolua ao longo de muitos anos. A maioria dos investigadores que trabalham neste campo concorda que 15 a 20 anos é um prazo razoável para surgir o primeiro órgão humano impresso em 3D à escala real. À medida que a tecnologia progride e a nossa compreensão da biologia se aprofunda, é possível que uma gama mais ampla de partes do corpo humano, desde órgãos complexos a tecidos intrincados, se possa tornar acessível para impressão 3D e transplante no futuro.
E será, um dia, possível imprimir um cérebro funcional?
A ideia de imprimir um cérebro humano funcional é um conceito altamente complexo e eticamente problemático. A capacidade de bioimprimir um cérebro humano com consciência, pensamentos e intrincadas conexões neurais é especulativa e cai no reino da ficção científica. O cérebro humano é indiscutivelmente o órgão mais complexo e menos compreendido do corpo humano. Replicar a sua estrutura complexa e funcionalidade, incluindo consciência, emoções e pensamentos, está muito além das capacidades da ciência e tecnologia atuais. A nossa compreensão da consciência e da base neurológica da senciência ainda está em evolução. Mesmo que fosse cientificamente possível replicar o cérebro, os problemas éticos em torno da criação de entidades sencientes ou conscientes levantariam questões éticas, filosóficas e legais que seriam difíceis de abordar.
Criar um ser humano inteiro através da impressão 3D levanta uma infinidade de complexos problemas éticos, morais e práticos. A complexidade de um ser humano, com triliões de células, intrincado código genético e o processo de desenvolvimento desde a conceção até a idade adulta, está muito além das capacidades da tecnologia atual e da compreensão científica. Depois, temos questões fundamentais sobre o valor da vida e as responsabilidades dos criadores. É importante reconhecer que a bioimpressão de seres humanos é um tema complexo que vai além das capacidades científicas e tecnológicas.
Como surgiu a Vital 3D?
Tendo um dos meus mentores morrido de cancro urinário enquanto eu trabalhava numa startup anterior, sempre quis criar tecnologia, para ajudar com este tipo de doença terminal. Juntamente com outros cientistas de laser, pensámos que a luz poderia ser uma ferramenta perfeita para usar nas ciências da vida. Perguntámo-nos: "Podemos usá-lo para imprimir novos órgãos humanos para lidar com situações como as que o meu mentor teve?" Nasceu a ideia de uma bioimpressora para imprimir rins.
Em que países opera?
Atualmente, as nossas instalações de investigação estão localizadas em Vílnius, na Lituânia. Num futuro próximo, temos planos para abrir escritórios em alguns países da UE e nos EUA.
Quantos funcionários permanentes tem? Em que áreas de especialização?
Somos oito. Temos depois cientistas que trabalham nas áreas de biologia, engenharia laser e mecânica, programação de software e IA, bem como especialistas em vendas e marketing.
O que se vê a fazer daqui a 10 anos?
Ajudar a sociedade a manter-se mais saudável e a viver mais feliz.
Nota: por uma questão de rigor nos termos técnicos, a entrevista foi concedida por e-mail.