Vice-presidente do PSD admite Exército nas ruas como solução de recurso
Miguel Albuquerque, 1 de setembro de 2022: "A hipérbole hoje chama a atenção e muitas vezes altera os factos, mas a evidência é esta: nunca vivemos com tanta segurança e com tão pouca violência como nos dias de hoje."
Pedro Calado, 26 de outubro de 2022: "Este problema [a criminalidade associada à população sem-abrigo e ao consumo de novas substâncias psicoativas] tem vindo a ganhar escala porque durante muito tempo houve adormecimento no tratamento desta questão e estamos a apanhar com uma bola de neve que já é relativamente grande [...]. Nós temos um Exército, temos uma GNR, temos outras entidades militares que podem fazer esse patrulhamento, que, nós sabemos, é dissuasor da presença de muitas dessas pessoas na ruas."
O primeiro é presidente do Governo Regional da Madeira desde 2015 e já foi presidente da Câmara do Funchal de 1994 a 2013; o segundo já foi vice-presidente do governo regional e é desde as últimas eleições autárquicas, de setembro de 2021, presidente da Câmara do Funchal. Entre as duas declarações há 56 dias de diferença.
Nessa quinta-feira, 1 de setembro de 2022, Miguel Albuquerque afirmou que a questão da segurança não deve ser "dramatizada", que os números da insegurança têm baixado em todo o mundo e na região autónoma e que a "extrapolação dos factos", decorrente do "epifenómeno mediático" e da "hipérbole", é gerada através da internet e das redes sociais.
O comandante da PSP da Madeira, Luís Simões, na análise "factual e pragmática", como sublinhou, que fez dos dados falou de uma redução de 7,9% da criminalidade denunciada e de 18,4% da criminalidade grave em 2021: "Foram os melhores números da última década em termos de criminalidade denunciada." Tradução em números? Menos mil crimes. Números provavelmente "irrepetíveis" nos próximos anos, tendo em consideração o regresso à normalidade social após o fim das restrições decorrentes da covid-19.
Luís Simões deixou nesse discurso a advertência de que a criminalidade associada à população sem-abrigo e ao consumo de novas substâncias psicoativas [o caso do bloom] não se resolve com mais polícias, mas com "soluções multidisciplinares" e "respostas clínicas e sociais caso a caso".
"A PSP está disposta a colaborar, mas rejeita as acusações fáceis e fúteis que colocam na polícia toda a responsabilidade", vincou.
56 dias depois, Pedro Calado dramatizou o discurso. "Basta passar nas ruas do Funchal, a qualquer hora do dia ou à noite, e desafio qualquer pessoa, eu próprio faço essa ronda muitas vezes, a encontrar um polícia. Encontra um à frente do Banco de Portugal, mas é o único. Lamento é que, por parte do Estado Português, não se dê condições à PSP para intensificar o patrulhamento na rua contra estas situações."
56 dias antes, a secretária de Estado da Administração Interna, Isabel Oneto, tinha anunciado um investimento de 12 milhões de euros para construção e reabilitação das Esquadras de Ponta do Sol, Calheta (zona oeste), Santa Cruz, Machico (zona leste) e Porto Santo.
O Ministério da Administração Interna (MAI), contactado pelo DN, lembra que o dispositivo da PSP na Região Autónoma da Madeira - com 735 efetivos - acaba de receber mais 36 elementos, com a recente entrada ao serviço dos mais de 900 novos polícias saídos do curso, em Torres Novas. Entram "36 até final de 2023, mas vão sair 52", diz fonte ligada ao processo.
Sobre o "repto" de Pedro Calado para que o Exército possa patrulhar as ruas do Funchal, o MAI não faz comentários. Remete antes para as palavras de Albuquerque a 1 de setembro: "extrapolação dos factos", "hipérbole", "nunca vivemos com tanta segurança e com tão pouca violência como nos dias de hoje". Por seu lado, o Ministério da Defesa prefere não fazer comentários.
"Ninguém está a defender um Exército armado, o que pedimos é o apoio e a presença de militares desarmados para uma vigilância dissuasora em determinadas zonas do Funchal", explica Pedro Calado ao DN.
E, para que não restem dúvidas, assegura que "a cidade do Funchal é uma cidade segura. O que nós temos vindo a assistir é a um crescimento do uso de drogas sintéticas. Esse problema é visível na zona velha e agora também na zona alta. Encerrámos becos, arruamentos complicados e casas devolutas e eles também foram para as zonas altas... Isso cria um clima de insegurança".
"Se a PSP não tem meios e se a GNR não tem competências, não é despropositado pedir o auxílio do Exército. E por que razão não há de ser concretizável se, por exemplo, colaboraram na questão da pandemia?", questiona o autarca do Funchal.
"Com o devido respeito pelo senhor [Pedro Calado], mas as Forças Armadas não podem, não têm funções constitucionais de policiamento", esclarece Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático, constitucionalista, que não "alcança" como se pode elaborar, "nem sequer em tese", um "repto, um desafio como o que foi feito", porque viola "a Constituição, as leis da República, a Lei de Defesa Nacional".
"As Forças Armadas não são forças de segurança interna. Isso não é possível. Só seria possível se houvesse uma situação de estado de sítio, o que não é o caso. As Forças Armadas podem colaborar em ações de proteção civil, mas policiamento não é proteção civil. E pouco importa o argumento de irem para as ruas desarmadas. É que nem armadas nem desarmadas. A função de policiamento não depende das armas que se tem", explica o professor catedrático.
"Não é de todo o caminho", afirma Fernando Negrão, magistrado, deputado do PSD, ex-presidente do conselho de administração do Instituto da Droga e da Toxicodependência, antigo diretor-geral da Polícia Judiciária e ex-ministro da Segurança Social, da Família e da Criança.
Sem querer alongar-se em muitas considerações, o atual presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias acrescenta duas razões que considera, nesta altura, serem simples de perceber: "Por razões humanitárias, é um erro, porque esse não é o método de abordagem desse problema. Por razões de natureza económica, é um erro, porque os turistas com certeza não querem ver o Exército nas ruas."
Cláudia Aguiar, madeirense, eurodeputada do PSD, diz que "obviamente que, se for o Exército, não concordo com isso. Não se pode entrar por aí sendo a Madeira um destino turístico. O problema [da toxicodependência e criminalidade associada] já foi identificado há algum tempo. Creio que Pedro Calado não se foca unicamente no Exército, coisa que existe em outros países com regimes contrários àquele que nós advogamos. Não estou em crer que tenha isso em mente".
"Se não há de facto PSP suficiente, que se reforcem, para os termos na rua com esse efeito dissuasor. Mais polícias não resolve o problema, mas atenua", considera a antiga deputada social-democrata.
Paulo Cunha, vice-presidente do PSD, tem uma leitura diferente - admitindo o uso das Forças Armadas. "A questão do Exército colocar-se-á como solução de recurso, perante a constatação da sua inevitabilidade. Sabemos que a presença do Exército na rua ainda está associada a uma imagem que não é a melhor para a maioria dos portugueses, o pré-25 de Abril, mas o Estado português não pode continuar com soluções paliativas, deve procurar respostas efetivas que devolvam aos portugueses a sensação de segurança."
A explicação é simples: "Devemos começar pelos meios convencionais [as atuais polícias e a GNR] e procurar perceber como é que os podemos maximizar. No dia em que constatarmos que não é possível, pois com certeza que se usem outros, nomeadamente o Exército."
Marcos Perestrello, deputado do PS, antigo secretário de Estado da Defesa e atual presidente da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, resume as pretensões do autarca do Funchal numa frase: "Isso não faz sentido absolutamente nenhum. Nem do ponto de visto legal, nem do ponto constitucional, nem do ponto de vista de combate ao fenómeno. Não faz qualquer sentido."
Pedro Filipe Soares, líder parlamentar do BE, considera um "absurdo que alguém em pleno século XXI, em 2022, duas décadas depois de termos feito alterações à legislação sobre os problemas da toxicodependência e a criminalidade associada, vir dizer que o que é preciso é o Exército ir para a rua para responder a estes problemas. Isso demonstra uma completa insensibilidade, por um lado, e desconhecimento, por outro".
"Para se fazer o repto que se fez", acrescenta, "é porque ou não se conhece ou não se quer reconhecer que a abordagem tem que ser não apenas policial mas sim uma abordagem estruturada nas diversas dimensões do problema, para se chegar ao resultado que desejamos, que é trazer mais segurança, mais garantias à ordem pública."
Para o PCP, "este tipo de intervenção do presidente da Câmara Municipal do Funchal é insensata e vai contra os interesses da população e da cidade", porque "os problemas sociais não se resolvem por esta via e com este tipo de soluções, resolvem-se com políticas sociais e económicas".
E, tal como Fernando Negrão, do PSD, também o PCP coloca a questão da "economia do Funchal", que "vive essencialmente do turismo". Logo, "ter uma cidade repleta de militares não será uma situação que os turistas queiram ver".
E por fim um reparo: Pedro Calado certamente "deverá conhecer a Constituição da República Portuguesa e a distinção que a mesma estabelece entre Defesa Nacional e Administração Interna".
Rui Tavares, do Livre, recorda que "por todo o país existem polícias municipais que servem essencialmente para que exista uma maior proximidade entre as forças de segurança e a população; no Funchal, e apesar de já ter sido proposta a sua criação, o PSD e o seu presidente não concordaram com a criação da mesma [...]. O Livre opõe-se a esta proposta do presidente da Câmara do Funchal e defende a criação da polícia municipal que o PSD parece continuar a não querer". E depois uma explicação: "As forças militares não servem, nem devem servir, para policiar cidades ou cidadãos, as forças militares só devem vir para as ruas em caso de extrema gravidade de ordem pública, como ataques terroristas."
"Não tem pés nem cabeça. As Forças Armadas portuguesas estão acometidas de funções militares, não de funções civis de segurança, fiscalização, etc. Cada macaco no seu galho. Isto não tem sentido absolutamente nenhum", considera Nuno Morna, da Iniciativa Liberal.
Miguel Castro, do Chega, por seu lado, diz que "o problema não é a falta de agentes. O problema é de enquadramento legal. É preciso criminalizar a posse para consumo individual, criminalizar este comércio e consumo na rua".
Em declarações ao DN, Pedro Calado defende tese semelhante, que "a questão de base é a não-criminalização de quem trafica estas drogas sintéticas que escapam às listas de drogas e de quem usa este tipo de substâncias, esse é que é o problema".
Paulo Cunha também considera que "a legislação não está adequada às novas substâncias" e que, por isso, até "do ponto de vista sanitário faz sentido equacionar a mudança, revisitar a lei e ver se está ajustada. Do meu ponto de vista, não está".
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