Viagens de Ryszard Kapuscinski acompanhado pelo pai da História
Após o anúncio da sua morte, sai um belo livro de vivências
Há personagens na literatura que são mais do que isso, tornam-se protagonistas. E Ryszard Kapuscinski é um deles, mesmo que o nosso conhecimento do autor não passe além do milhar de páginas que já foram editadas em língua portuguesa pela Campo das Letras.
A morte deste escritor polaco aconteceu este ano, a poucos dias da edição deste Andanças com Heródoto e só não surpreendeu mais por causa da distância a que estava de nós, a suficiente para nos apanhar desprevenidos. Mas antes de folhear Heródoto vale a pena relembrar três volumes publicados entre 2001 e 2005. Primeiro foi a vez de Ébano - Febre Africana, um relato que entrelaça a sua paixão por África com uma imensa galeria de conversas tidas em vários países. Começa por uma viagem de avião que o levará de um clima chuvoso para o exigente calor tropical e em seguida percorre uma lista de terras distribuídas pelo continente negro. Pessoas do Gana, Zanzibar e Ruanda, entre outros, são-nos dadas a conhecer, tal como as suas experiências de vida e esperanças. Mesmo assim, Kapuscinski diz que o livro "não é sobre África"...
Com O Imperador, o autor viaja por um local exacto de África, a Etiópia do rei Haile Selassie, e faz uma reportagem junto daqueles que o serviam que é devastadora. Um dos que têm a sua história contada é um funcionário que andava sempre com um pano de cetim para limpar o chichi que o cão imperial vertia sobre as visitas!
E, com o Império, é a grande expedição pela União Soviética realizada em várias viagens entre 1989 e 1991. Aqui o escritor atravessa outro continente e faz uma fotografia do fim de um sonho e do começo do pesadelo nascido da desagregação das várias repúblicas socialistas. Termina com um conjunto de reflexões sobre essas viagens, depois de atravessar a Sibéria e relembrar a invasão da sua terra natal pelos tanques soviéticos.
Mas, se nestes livros referidos Ryszard Kapuscinski permitia o voo do leitor sobre os impérios que o inspiraram por tantas viagens, em Andanças com Heródoto, o autor conta--nos mais alguma da intimidade que até agora reservara para si. Kapuscinski começa por recordar a oferta que a sua redactora-chefe lhe fez em tempos, um livro de Heródoto intitulado Histórias. É esse livro que o jornalista levará nas suas primeiras reportagens ao exterior da Polónia, e será através dele que irá contar essas deslocações à Índia, China, Ásia Menor e África. Só que o executa com tanta beleza que mesmo o leitor prevenido para este tipo de literatura fica surpreso. Porque o que acontece é que ao pegar nessas recordações irá salpicá-las com parágrafos velhos de dois mil anos e contrapô- -los à actualidade, mostrando como os princípios escritos pelo pai da História ainda se podem aplicar ao homem do século XX e XXI.
Ainda por cima, ao colocar algum memorialismo nestas Andanças, Kapuscinski faz-nos sentir que está a partilhar connosco as suas experiências e essa sensação obriga-nos a ir até ao fim do livro com um raro prazer e bastante curiosidade. Defeitos na narrativa, só as muitas citações, compensadas contudo pelo valor historiográfico.