Viagem ao mundo dos forcados
O QUE FAZ estes jovens saltarem as trincheiras e enfrentarem de mãos limpas e peito aberto um touro bravo de 590 quilos? A NS’ acompanhou, ao longo de algumas semanas, os Forcados Amadores de Alcochete, considerados actualmente um dos três melhores grupos do país (os outros dois são os de Santarém e os de Montemor, de acordo com o número de corridas contratadas para esta temporada), e entrou no círculo restrito destes forcados, com os seus ritos e rituais.
Já lá vai o tempo em que os forcados eram trabalhadores rurais ou jovens «marialvas» rústicos em busca de fama e aventura. Os tempos mudaram. No Grupo de Forcados Amadores de Alcochete muitos são estudantes ou já licenciados e com empregos pacatos. São contabilistas, empresários, funcionários públicos, comerciais. Só um está ligado à agricultura, no caso, vendedor de fruta...
«Isto dá-nos muito prazer, a adrenalina do perigo, a sensação de honra na arena, o sentido de nos superarmos dia após dia, sempre no limiar da coragem, e sermos capazes de o ultrapassar e de procurar a perfeição», diz Vasco Pinto, cabo dos Forcados Amadores de Alcochete.
VÍTOR MARQUES, de 37 anos, é o mais velho do grupo e o único casado e com filhos. Forcado há 19 anos, é funcionário do departamento de Cultura da Câmara Municipal de Alcochete. O seu pai foi um dos fundadores do grupo e foi na tasca da família, uma das mais afamadas casas de fados do distrito de Setúbal, que o grupo se reuniu durante muitos anos. André Tavares, 23 anos, licenciado em Contabilidade e Finanças, troca de bom grado a empresa de consultoria onde trabalha pelos toiros ao fim-de-semana. Diogo van der Toorn, de 20 anos, estudante, filho de pai holandês e mãe ribatejana, veio para os forcados por influência dos amigos.
«Ser forcado permite-nos manter a ligação ao campo e às tradições», afirmou o cabo dos forcados Vasco Pinto, de 27 anos, forcado há 11, relações-públicas do El Corte Inglés em Lisboa. O seu pai foi um dos fundadores do grupo e foi a influência familiar que o trouxe para este mundo dos touros logo desde criança. Nos meses de preparação da temporada, fazem treinos em tentas nas quintas de ganadeiros e toureiros amigos da região.
«Há demasiados grupos de forcados, muitos não têm condições para existir, pois fazem apenas uma ou duas corridas por ano, e qualquer grupo que se preze tem de fazer pelo menos 12 corridas por ano», afirmou Vasco Pinto. Há 47 grupos de forcados em Portugal, dos quais só uns 12 conseguem actuar no Campo Pequeno e só meia dúzia entram na Monumental de Santarém, praças muito exigentes onde só entram grupos com provas dadas. O Grupo de Forcados Amadores de Alcochete conta 38 anos de historial e está entre os três melhores.
«OS FORCADOS são artistas e é isso que nos distingue dos agarra-bois que se atiram à bruta para os touros; nós sentimos prazer e procuramos fazer as coisas com fluidez e elegância, temos de saber tirar partido do animal, desfrutar o momento, caminhando com arte para o touro. Ser forcado hoje é muito exigente, dentro e fora da praça, pois antes de sermos forcados somos homens e temos de nos saber comportar socialmente», disse o cabo Vasco Pinto, demarcando-se da imagem de marialva e brigão durante muitos anos colada ao forcado.
Rui Rosa, de 29 aos, comercial de uma empresa de telecomunicações, está a recuperar de uma fractura do perónio sofrida numa pega no ano passado. Por cada actuação, o grupo recebe um cachet para suportar as despesas das deslocações, alimentação e alojamento e que ainda serve para um fundo de assistência em caso de necessidade. «Foi essa ajuda que me valeu quando fiquei hospitalizado, pois perdi o emprego e o grupo pagou-me o salário enquanto estive em convalescença», conta Rui Rosa, lamentando que muitas empresas recusem dar trabalho a forcados, por causa das frequentes baixas por lesões. Não é o caso de Vasco Pinto que, no final das corridas, até costuma receber um telefonema da chefe a felicitá-lo pela actuação.
No quarto do hotel, onde mal cabem os 18 forcados, reina um ambiente animado. Falta cerca de uma hora para a corrida. A tarde está abrasadora. Estão todos em cuecas. São bem visíveis as cicatrizes de outras touradas que deixaram dolorosas recordações. Pressente-se a tensão.
DOS TRINTA elementos do grupo, só 18 foram convocados para se fardarem nesta corrida e, destes, só oito serão seleccionados pelo cabo para entrarem esta tarde na arena.
Só o cabo dos forcados e os cavaleiros tiveram autorização para observar os toiros que vão ser lidados. Por isso, Vasco Pinto é o único que sabe o tipo de feras que vão ter de enfrentar dali a uma hora, na arena de Santarém. Lembra os seus forcados da enorme responsabilidade: «Vamos ter de honrar esta jaqueta, não podemos ser uns agarra-bois, mas sim verdadeiros forcados que fazem da festa brava uma arte.» Anuncia os nomes dos convocados e, tal como um treinador de futebol, dá a táctica para enfrentar os touros.
Segue-se o ritual do fardamento. Vasco Pinto usa o barrete que recebeu aos quatro anos e que já é uma espécie de talismã. Os barretes são colocados no chão – superstição antiga, para afastar os maus espíritos, enquanto envergam as fardas. Tudo ao som de flamenco.
Alguns rezam virados para a parede. Na mão, vemos uma pagela com a foto do antigo forcado do grupo Hélder Antoño, que morreu numa corrida de touros em Alcochete, há 21 anos. Todos têm medalhas da Virgem de Macarena e de Nossa Senhora da Atalaia. Na hora de reunir coragem e forças, Vasco Pinto dá as últimas instruções. Seguem-se os cumprimentos – um abraço e uma palmada no lugar do coração. E seguem a pé para a praça.
Na Monumental de Santarém, a maior do país, esperava-os uma praça cheia no Dia de Portugal. Foi a maior corrida do ano, até ao momento, com cerca de 14 mil espectadores. Os toiros Passanha impunham respeito, com pesos entre os 530 e os 590 quilos.
A abrir, coube ao jovem Ruben Duarte ir para a cara do touro. Uma pega muito dura e difícil, só concretizada à terceira tentativa. Na segunda pega foi para a cara o cabo Vasco Pinto. Coube-lhe o touro mais pesado da corrida, com 590 quilos. A pega foi concretizada à segunda. João Pedro Sousa fechou com chave de ouro a intervenção do grupo em Santarém, com a melhor pega da tarde.
À saída, sujos da terra da arena e do sangue dos touros, os forcados regressaram a pé ao hotel, cumprimentados pelos populares na rua como heróis. «Em França é extraordinário, as pessoas até nos tocam, para verem se temos alguma armadura que nos proteja», comentou Vasco Pinto.
Foi a sua tarde de glória. À noite, rodeados de familiares, namoradas e amigos, festejaram o triunfo com um jantar em que se cumpriram os rituais de camaradagem do grupo.