Viagem à Inglaterra que continua a querer sair da UE
O que um velho trator enferrujado tem de bom, diz o mariscador Tony McClure, é que até no lodo trabalha. O seu está estacionado nas planícies arenosas de Flookburgh, na Baía de Morecambe, noroeste de Inglaterra. Ele compara os velhos tratores mecânicos aos novos, eletrónicos e modernos, percebendo-se bem do que fala. A maré sobe rápido: se não se tiver cuidado, o veículo fica alagado. Então é preciso ter a certeza de que não se fica no fundo do mar.
McClure é uma das várias pessoas com quem me encontrei entre fevereiro e março, ao longo da linha costeira de Inglaterra. Por aí andei a fotografar e a falar com pessoas que votaram no Leave, para sair da União Europeia. Tal como as cerca de 50 pessoas com quem falei, durante a viagem de Morecambe para St. Agnes, na Cornualha, McClure quer os britânicos fora da UE. Muitos falam como se sentissem enganados por Bruxelas e presos num mundo que se vira contra eles.
"Eles embrulharam-nos na sua pequena rede, com as suas leis e, dessa forma, controlam-nos", diz John Eldin, de 77 anos, na costa leste. "Eles bloqueiam tudo o que querem", afirma Tony Brown, de 59 anos, enquanto bebe uma pint em Barrow-in-Furness. "Nas últimas décadas temos sido assimilados numa coisa com a qual não concordamos", declara Tom Morris, de 34 anos, uma drag queen de Brighton, que votou no Leave.
Embarquei nesta viagem porque, olhando para o Reino Unido a partir da Irlanda, notei que havia qualquer coisa nas zonas costeiras. O resultado do referendo de 2016 sobre o Brexit foi à justa (51,89% pelo Remain e 48,11% pelo Leave), mas na costa o voto no Leave foi particularmente forte. O Leave teve maioria em mais de 100 das 120 circunscrições da linha costeira. Queria saber mais sobre as pessoas que contribuíram para esse resultado.
A viagem foi uma revelação. Em primeiro lugar, as pessoas ficaram surpreendidas ao ser questionadas sobre as suas opiniões, dizendo simplesmente que sentiam que não eram suficientemente importantes para serem levadas a sério por Londres. As pessoas receberam-me com chá, biscoitos, sandes, levaram-me a passear de trator e jogar bingo, fizeram-me até propostas de casamento na brincadeira. A maioria continua a querer sair da UE.
As suas razões são mais individuais e variadas do que se poderia esperar. Alguns queriam reavivar o passado nostálgico ou simplesmente manter os imigrantes longe. Alguns pensavam que iriam recuperar o controlo do seu país, alguns queriam ver acabar a burocracia europeia que consideram ter prejudicado os seus modos de vida e outros - como o mariscador de Flookburgh - acharam que era tempo de Londres prestar atenção às vozes mais pequenas.
Outros, porém, têm objetivos mais concretos: uma avó de Skegness espera que o declínio da sua aldeia - que já foi classificada como a zona costeira mais carente da Grã-Bretanha num estudo do Instituto Nacional de Estatística de 2013 - possa ser travado se o dinheiro dos contribuintes deixar de ser enviado para a UE.
Outras pessoas ainda, como a pescadora Margaret Owen, querem melhores líderes. "Temos que nos manter de pé, somos um país capaz", diz ela. "As pessoas em quem confiámos e em quem votámos e que pensámos que eram capazes de concretizar os nossos sonhos e as nossas esperanças desiludiram todo o país".
Entre os poucos dissidentes do Brexit que conheci está Chris Baker, de 51 anos, web designer e massagista. Tal como muita gente em Brighton, ele votou Remain. A Europa tem sido "o maior garante de paz que já tivemos em muito, muito tempo", afirma.
Era época baixa quando cheguei à costa leste e avizinhava-se uma tempestade. As cidades ribeirinhas são muito de épocas, mas as pessoas que vivem nas zonas costeiras de Inglaterra sofrem mais provações do que a média dos cidadãos, segundo um estugo governamental de 2015.
Dos restos de ferrugem dos trabalhadores de aço de Redcar, ao esqueleto varrido pelo vento da feira encerrada no inverno em Skegness, as pessoas que conheci disseram que tudo o que querem é encontrar uma forma de ganhar a vida.
Em Whitby, uma cidade pitoresca em que a indústria pesqueira cedeu lugar ao turismo, Derek Brown, cujo trabalho é defumar arenque, destaca que nenhum do peixe que usa é apanhado localmente. Nos últimos 30 anos, são importados da Noruega ou da Islândia. São descongelados durante a noite, diz ele, como se estivesse a passar uma receita secreta.
Em Redcar, os camiões-cisterna passam ao longo da costa. Vários jogadores de golfe estavam nos campos, mas na cidade estava tudo fechado, porta a seguir a porta. As únicas lojas que não estavam fechadas eram aquelas de produtos baratos ou de descontos, espaços de caridade, pastelarias, lojas de doces. Ah! E uma sapataria - com um sinal na janela a dizer que está à venda.
A fábrica de aço de Redcar está encerrada desde 2015. "Não há trabalho aqui", diz John Mohan, uma homem de 73 anos que, durante quatro décadas, trabalhou na indústria do aço.
Os sítios com mais vida ao longo do estreito são salas de jogos. As pessoas, com baldes de plástico chocalhando com moedas, estão no interior. Espreitando para dentro, vi apostadores a colocarem nas máquinas moedas de 2 Pence, umas atrás das outras, quase de forma robótica.
Quando cheguei a Brighton, a tempestade - de seu nome Freya - atingiu terra. As ondas esmagaram-se contra o cais, uma das principais atrações do Reino Unido em 2017, mas agora encerrada durante o inverno. Passei por pátios vazios na escuridão.
Brighton é uma zona mais rica do que a costa leste. Os seus residentes têm rendimentos acima da média nacional. E a maior parte deles votaram pela permanência do Reino Unido na UE.
O cais estava envolvido nas cores do arco-íris, em referência à aspiração da cidade em tornar-se "a capital gay". Desde o século XVIII sempre foi um sítio de liberdade. Segundo o museu de Brighton, foi para este cidade que Jane Austen mandou uma das suas personagens, pois aí "poderia namoriscar ternamente com seis oficiais ao mesmo tempo". Numa terça-feira invernosa de 2019, era noite de microfone aberto no Western Bar.
Chris Baker, partidário do Remain, está preocupado com a forma como o debate endureceu no Reino Unido. "Eu penso que já vimos muita coisa negativa, com pessoas a agirem contra os estrangeiros, e vai haver mais", diz. "Vimos algum impacto no facto de agora já não virem tantas pessoas para cá - há menos enfermeiros e, em breve, haverá falta de pessoas para apanhar os legumes e fazer esse tipo de trabalhos de verão que os ingleses não querem fazer".
Na Cornualha, conheci uma casal de agricultores, Andrew e Helen Arnold, que só muito recentemente disseram um ano outro que votaram de forma diferente no referendo. Ela votou Leave, Ele Remain.
À volta de chá e bolos caseiros na sua acolhedora cozinha, ela pergunta-lhe porque é que ele optou pela permanência do Reino Unido na UE. E ele responde: "Não gosto de mudanças".
* Fotojornalista da Reuters