Vhils. Um artista do mundo que regressou às origens

Alexandre Farto é dos mais reconhecidos criadores de arte urbana. Nasceu no Seixal, estudou em Londres e trabalha no Barreiro
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A ligação emocional com uma zona pode condicionar a escolha de um local para trabalhar, mesmo quando se é um dos melhores do mundo no que se faz e não faltariam opções para instalar um estúdio? A resposta é simples: pode e pesa muito.

Alexandre Farto, conhecido com Vhils, é a prova dessa teoria. Vhils é um dos melhores do mundo na sua profissão com trabalhos de arte urbana, escultura e obras de intervenção desde Nova Iorque, Brasil, à China, passando por vários países europeus. Em Portugal existem obras suas em ruas de diversas cidades, principalmente em Lisboa.

Com este currículo, o homem que nasceu há 29 anos no Seixal (faz 30 na quarta-feira) podia muito bem trabalhar em qualquer lugar - aliás, durante dois anos teve um estúdio em Londres -, mas desde há um ano decidiu responder ao desafio da empresa Baía do Tejo e regressou às origens. Enfim, um pouco ao lado: nasceu no Seixal e instalou-se no complexo da Quimigal, no Barreiro - em linha reta são 16 quilómetros.

"Lisboa tem espaços interessantes, mas há a razão emocional. Sempre achei que há coisas interessantes a fazer neste lado [margem sul do Tejo] e isso também me interessa. Aqui também tenho todas as condições e são poucos os sítios assim. O convite apareceu quando andava à procura de um local, não só aqui como em Almada - fiz o vídeo dos U2 [que acompanha a canção Raised by Wolves, do álbum Films of Innocence, de 2014] - e aqui tenho as condições perfeitas. Também estamos resguardados, com alguma paz de espírito", explica Alexandre numa sala do primeiro andar de um armazém de 1200 metros quadrados que a empresa Baía do Tejo lhe disponibilizou. Onde tem vários espaços onde o artista faz as suas criações.

Vhils é a cara de um projeto que tem levado a arte urbana aos mais diversos pontos do globo - no final da semana inaugurou uma instalação em Banguecoque, estando a caminho da China, onde em maio vai ter uma exposição.

Mas acaba por ser neste regresso às origens que tem aquilo a que chama uma parte das suas missões. "Tens o poder da arte pública para comunicares com a cidade. Trabalhamos com comunidades onde há problemas entre as pessoas e as autarquias. Por exemplo, ao gravarmos a cara das pessoas, como aconteceu no Brasil com uma comunidade que estava num processo de expropriação, crias uma imagem que tem impacte, dás voz às pessoas", salientou.

E é neste dar voz que se encaixa a escolha do Barreiro e o chamar a atenção para uma Margem Sul que muitas vezes foi considerada marginal? "Era marginal sim. Isso foi uma das razões que me levaram a vir para aqui. Há muitas associações, artistas, de muito valor. Se fores ver na área da cultura, espetáculo, televisão etc., há muita massa que veio não só desta margem como da periferia norte de Lisboa. E acho que quebrar esses preconceitos é importante", frisou.

Vhils era mais rápido de escrever

Quebrar barreiras, cravar em paredes rostos para chamar atenção para quem mais sofre, utilizar os "materiais que a cidade expele". Estas são algumas das marcas do trabalho de Alexandre Farto, que trabalha com os materiais que são deitados fora - ou seja, faz obras através da reciclagem.
"É quase como tornar visível a história dos detritos que a cidade deita fora. Seja as portas, as paredes, tudo tem camadas que nós estamos a expor, num processo arqueológico que é feito sobre a história recente. Por vezes perdemos um bocadinho a ideia de como as coisas mudaram nos últimos 20 ou 30 anos. A ideia é expor um bocadinho dessa história que é tão rica", conta sobre o seu trabalho.

E é quando se fala de história que se volta à Margem Sul e às escolhas de Vhils: "Já houve oportunidades de ir trabalhar para fora do país, mas a relação emocional é grande. Tentamos mexer com a arte pública de Lisboa. Tenho uma relação com a zona onde nasci e cresci. Tivemos um ateliê em Londres - após o secundário foi estudar para a University of the Arts -, durante dois ou três anos, mas para mim sempre fez sentido voltar aqui, voltar à raiz do trabalho. Onde surgiu a ideia deste trabalho, que foi deste lado."

Vhils tinha 11 anos quando começou a pintar, no Seixal - "foi a minha escola. A irreverência, mas ao mesmo tempo também foi uma coisa que me encontrou" -, e foi aqui também que subiu um degrau: pintar comboios. " Foi um pouco mais tarde. Mas aos 17, 18 anos é que as coisas começaram a assentar um pouco e comecei a explorar outros caminhos. Ofereceu-me a ideia de trabalhar as camadas, as ruas. A relação que tinha com os murais a que sempre estive exposto também teve uma componente forte", explicou.

E é nos grafitos de comboios que surge o nome pelo qual é conhecido. "Eram as letras que conseguia fazer mais rápido. Conseguia fazer numa só linha e mais rapidamente. Começaram a chamar-me assim e ficou. Também me defendia, era uma zona de conforto, porque não quero expor a minha vida privada. O trabalho é uma coisa e a pessoa é outra. O trabalho tem uma missão, uma mensagem", sublinha.

Voltamos, assim, ao que considera a sua missão e na qual tem trabalhado desde os anos 2000. "Acredito que o artista deve levantar questões. Como é óbvio tenho respostas, mas evito conduzir essas respostas. Hoje as rotinas urbanas estão muito próximas e isso aproxima-nos muito do lado urbano do mundo. Mas ao mesmo tempo cria uma clivagem entre as zonas urbanas e rurais. E as democracias estão a tentar lidar com isso, com essas duas velocidades, essas duas maneiras de ver a evolução, e é nessa questão que o trabalho tenta fazer, tenta mostrar como todas as identidades do mundo estão afetadas por esse processo. É uma discussão que faço há dez anos e que hoje se nota que está a criar fricções, e isso torna importante o papel da arte. O artista deve fazer reflexão", explica quando fala sobre a génese do trabalho.
Ou seja, pegando numa outra ideia de Vhils: "Tu és o resultado de tudo o que te rodeia."

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