Veteranos da música espantalham o silêncio
Ficou para trás, há muito, a fase em que aquilo que queriam dizer chegava injetado de urgências e temperado de inquietações. Hoje, em quase todos os casos aqui reunidos pela circunstância, mais do que por qualquer proximidade estética ou etária, suscitam aquela reação displicente que tão bem caracteriza os consumidores de música popular: "Olha este! Ainda mexe...".
É mais um sinal exterior da atitude de quem prefere o novo e o que está na moda. Como se as carreiras que passam pela longevidade dos protagonistas se tornassem um estorvo, servissem para denunciar quem os ouve também como veteranos.
Esse preconceito inviabiliza que se perceba que são múltiplos os casos em que o caminho andado não funciona obrigatoriamente como impeditivo à vitalidade dos discursos de quem, por força do tempo, passou - isso sim - a olhar e frequentar a música de uma outra forma, porventura mais intermitente ou mais espaçada.
Se olharmos estes "congressistas" ocasionais, verificaremos que - com uma honrosa exceção - se trata de regressos, após alguns anos de ausência das gravações. O que, deve confessar-se, aumenta a curiosidade quanto ao "estado de saúde" dos artistas. Estarão longe dos ciclos mais gloriosos? Muito provavelmente. Mas têm uma palavra a dizer. E, com isso, ganhamos um naipe de boas canções.
Paisagens americanas
Começamos pelas longas estradas da América do Norte, que se espalham ao longo de cidades (estéticas, para o que interessa) em que os viajantes fazem escala, se alimentam e/ou pernoitam, antes de seguirem viagem para a etapa seguinte. Bonnie Raitt (66 anos) tornou-se, desde cedo, adepta destas excursões de recolha, tratando depois de manipular a matéria-prima para criar composições próprias e uma identidade plural que lhe permite, a cada passo, uma invejável solidez (e, convenhamos, os dez prémios Grammy conquistados não podem considerar-se obra do acaso).
Tomou como missão, inalterada desde um início de carreira reconhecido mas nem por isso popular, traçar as linhas que unem ou, pelo menos, aproximam o rock, os blues e a country. A formação instrumental de apoio é "enxuta" - dispensa cordas e metais, aposta forte no inconfundível som do velhinho órgão Hammond e na destreza que a própria Bonnie (uma das poucas mulheres a figurar nas listas que designam os melhores guitarristas) continua a demonstrar na utilização da guitarra elétrica e da particularíssima slide guitar.
Dig In Deep - lançado quatro anos depois de Slipstream - mantém o tom encorpado das canções, fazendo de uma versão de I Need You Tonight, original dos australianos INXS, a maior surpresa. Desta vez, à mistura com a feliz agitação de Shakin" Shakin" Shakes (criada por César Rosas e T-Bone Burnett) e com um blues exemplar, Gypsy In Me, que Eric Clapton não desdenharia, os melhores momentos estão reservados aos temas lentos.
Acontece em All Alone With Something To Say, Undone e The Ones We Couldn"t Be (com Bonnie ao piano) mas, sobretudo, com a pérola que se sobrepõe a tudo o resto: You"ve Changed My Mind, escrita, produzida e instrumentada pelo enorme (e subvalorizado) Joe Henry. A canção valeria todo um disco de menoridades. Felizmente, não se chega nem perto disso.
Em paralelo, surge o nome de Peter Case (62 anos), com Hwy 62 a interromper a falta de "notícias frescas" desde 2010, data de edição de Wig!. Case será porventura o nome menos familiar deste lote. Passou de ídolo adolescente (deixou a escola aos 15 anos, seguro da compensação a descobrir na música) do circuito de bares da sua cidade de residência (Hanburg, New York) a músico de rua em São Francisco, na primeira metade da década de 1930.
Deixou marca em notáveis mas efémeras aventuras da era punk californiana, primeiro com os The Nerves, depois com os The Plimsouls. Agora, no preciso momento em que festeja 30 anos de carreira solista, confirma ter seguido um percurso comum a muitos amadurecimentos musicais. Neste álbum, em concreto, faz questão de nunca abrandar as inquietações, bem espelhadas na frenética canção de arranque, Pelican Bay, ou, mais adiante, em All Dressed Up (For Trial).
Ainda assim, aquilo que se retém é uma indisfarçável e voluntária entrada na "magistratura de influência" de Bob Dylan. Não só pelo tom e pela toada, pela instrumentação seca, mas também por se (re)descobrir a vocação para contadores de histórias, sem moral exibida mas de desfecho imprevisível, os temas que mais se destacam são Water From A Stone, If I Go Crazy, The Long Good Time e Long Time Gone, manifestos de uma maturidade que nada tem de acomodado. Antes pelo contrário: a pulsação aumenta, mesmo que o ritmo explícito diminua. Os puristas não gostarão. Mas os puristas "divertem-se" cada vez menos.
Filhos do rock
Iggy Pop (69 anos) e Chris Isaak (59 anos) ajudam, olhados em conjunto, a perceber como é abrangente (e indefinida) a ideia do rock. Por mais voltas que se dê, não há outra forma de classificar ambos senão esta: produtos de uma cultura e, até, de uma estética em que, do ponto de vista estético, cabe hoje quase tudo. São filhos do mesmo "pai", mas, seguramente, as respetivas "certidões" identificam "mães" distintas. Um afirma-se pelo excesso, pelo bizarro, pelo cru. Do outro ressaltam o cabelo alinhado, o bom comportamento, a ideia de uma regra.
Pop volta - após quatro anos de intervalo desde Après, álbum de inesperadas versões de temas popularizados por Sinatra, Edith Piaf, Georges Brassens, Henri Salvador, pelos Beatles e por Joe Dassin (!) - com Post Pop Depression, um título que poderia facilmente associar-se às mortes de dois dos seus grandes mentores, juntamente com Jim Morrison dos Doors: Lou Reed, em 2013, e David Bowie, já este ano. Menos especulativa é a influência clara do produtor, coautor e guitarrista Joshua Homme, que nos habituámos a ver e ouvir nos Queens Of The Stone Age.
Há um momento perigoso no disco, em que se ouve a voz cavernosa de Iggy dizer, e não cantar que só lhe "resta o nome". Os mais críticos não vão coibir-se de aproveitar a deixa e interpretar esta confissão como um esgotamento. E há, efetivamente, ocasiões várias em que os vibratos na voz do homem que foi punk antes do tempo resvalam. Mas não se tome a parte pelo todo: na grandiloquência excêntrica de American Valhalla, a que não falta um vigoroso naipe de metais, no ataque desbragado que se concretiza em Vulture e na relativa linearidade de Chocolate Drops e de Paraguay reencontra-se o artista que nunca alinhou com regras impostas por terceiros. De resto, se tivesse lugar aqui um êxito como Candy ou como Real Wild Child, estaríamos a louvar a ressurreição do Mr. Iguana. Assim, regista-se a ocorrência, com a certeza de que o homem que deu vida aos Stooges é mesmo o último dos moicanos.
De Isaak, que retorna com First Comes The Night (primeira etapa desde Beyond The Sun, de 2011), não se espera a revolução, mas antes a competência, a elegância e aquela estranha sensação de entrada na máquina do tempo. Sempre aconteceu assim, desde que se estreou, há mais de trinta anos, com Silvertone. Chris continua a poder ser encontrado num qualquer cruzamento cósmico entre Roy Orbison, Elvis Presley e Buddy Holly.
Nada muda com este disco, onde não há surpresas mas se acotovelam canções que, mesmo de forma passageira, caem no goto. O cantor e autor sabe bem quais são as suas balizas - o rock"n"roll, o rockabilly, o doo-wop, o tex mex, até o boogie woogie. Acresce uma forma de cantar que se tornou imagem de marca e que, nessa medida, não sente necessidade de cambiantes. Admitamos que não há aqui nenhum tema à altura de Wicked Game. Mas, quem deixar passar em branco o tema-título, Some Days Are Harder Than The Rest e, sobretudo, Kiss Me Like A Stranger, fica a perder - e muito.
Fora da caixa
O que faz, integrada neste grupo, alguém como Tanita Tikaram? Afinal, nem a idade (46 anos) nem a geografia (é britânica, nascida na Alemanha) aproxima do restante lote. No entanto, diante do resultado de Closer To The People, editado quatro anos depois do falhado Can"t Go Back, agiganta-se o desejo de não deixar escapar a oportunidade de assinalar o seu melhor álbum... desde a estreia. Recordemos: em 1988, o mundo (e a indústria) das canções procurava febrilmente uma "réplica" de Suzanne Vega. Pensou tê-la descoberto em Miss Tikaram que, aos 19 anos, fazia ouvir a sua voz e as suas criações num disco soberbo, Ancient Heart, de que saltaram nada menos de quatro canções que ainda hoje cantarolamos (Good Tradition, Twist In My Sobriety, Cathedral Song e World Outside Your Window). O problema é que, daí em diante, o talento pareceu esbater-se, a voz deixou-se vulgarizar e a sentença não deu direito a recurso - Tikaram foi parar à lista negra dos "desaparecidos em combate". Até agora.
No novo trabalho, há canções que cativam à primeira, de Glass Love Train a Food On My Table, passando por Cool Waters e The Dream Of Her, todas a disponibilizar arranjos suculentos e, tal como há muito se não via, um à-vontade interpretativo, tão descomprometido como cheio de estilo. Com uma curiosidade adicional: aquilo que foi, noutra era, uma assumida proximidade à folk tornou-se uma tangente ao jazz, com direito a swing e tudo.
Segundo andamento fora da caixa: aquele que saúda a nova aventura de Willie Nelson (83 anos). Aqui, não se pode sequer aflorar a ideia de um regresso, uma vez que o criador do Farm Aid publicou, só nesta década, sete discos de originais e mais cinco em colaborações. No meio desta atividade frenética, o velho cowboy (ou índio, como queiram) consegue a proeza de lançar uma brisa fresca sobre 11 canções imortais de George Gershwin, parte integrante do Great American Song-book. Summertime - Willie Nelson Sings George Gershwin traz este pormenor delicioso: sem orquestras sumptuosas nem variações jazzísticas, assenta numa base em que ganham preponderância os instrumentos que habitualmente acompanham Nelson na arquitetura da sua amada country. Não faltam sequer a steel guitar e a harmónica. Sheryl Crow e Cyndi Lauper aparecem à vez para o dueto com o mestre. O resto, é tão só o génio de um intérprete que não se esgota e que, pelo menos por estas bandas, nunca foi devidamente considerado. Talvez com Gershwin... Sem cerimónias, só isto: quem duvidar, não o merece. De todo.