Publicado em 1854, o livro Norte e Sul (no original North and South), da autoria da romancista e contista britânica Elizabeth Gaskell, situa a sua ação em Milton, uma cidade industrial ficcionada localizada no Norte de Inglaterra. Ali, Margaret Hale, de 19 anos, é testemunha do sismo social provocado pela Revolução Industrial. Elizabeth traça na obra originalmente publicada na revista Household Words, editada pelo escritor Charles Dickens, um retrato duro e tenso da relação entre empregadores e trabalhadores, sem que falte a abordagem a questões como a greve e o sindicalismo. A obra de Gaskell é também momento para uma reflexão sobre vidas miseráveis em urbes sufocantes de brumas tóxicas das indústrias em crescimento. Um cenário antitético face aos ambientes naturais. A nostalgia pelo natural cativou o gosto vitoriano, que viu na profusão de cor das flores artificiais um lenitivo. Flores essas aplicadas como elemento de decoração e de moda, um estímulo ao desenvolvimento de uma comunicação simbólica -- a floriografia --, comummente conhecida como a linguagem das flores. Uma mania vitoriana alimentada pela profusão de formas e cores das flores e que propiciou toda uma indústria em torno do fabrico de delicadas pétalas artificiais. Reporta o Censos britânico de 1861 a existência de mais de quatro mil fabricantes de flores artificiais na cidade de Londres, a maioria a operar em unidades familiares sob condições de trabalho degradantes e ambientes insalubres..Em dezembro de 1861, um artigo de imprensa intitulado Pretty Poison-Wreaths" (algo como "Lindas Coroas de Veneno") noticiava o estertor de uma jovem de 19 anos, de seu nome Matilda Scheurer, uma florista na capital inglesa. A 20 de novembro de 1861, Matilda falecera de doença agonizante. "Ela [Matilda] vomitou águas verdes. O branco dos seus olhos ficou verde e disse ao médico que tudo o que via era verde." Alison Matthews David, historiadora norte-americana, cita no seu livro de 2015 Fashion Victims: The Dangers of Dress Past and Present, um médico do século XIX que relatava a manifestação de doença e dor de Matilda. As linhas de Pretty Poison-Wreaths sublinhavam ter sido "provado por testemunho médico que ela [Matilda] esteve doente pela mesma causa quatro vezes nos últimos 18 meses". Para a jovem florista o carrasco que perpetrara o ato final da sua curta vida tinha um nome: verde de Scheele, o pigmento inventado em 1755 pelo farmacêutico sueco Carl Wilhelm Scheele, descobridor profícuo do mundo químico. A Carl Scheele devemos a descoberta de elementos químicos como o cloro, bário, manganês, tungsténio, assim como de diversos compostos químicos, como o ácido nítrico e o glicerol. Com o seu verde, Scheele obtinha um tom vívido e fresco, barato de produzir e que imitava com precisão as cores da natureza. Um verde que, no entanto, era mortal, fruto de uma combinação química extremamente tóxica, um "casamento" letal de arsénico e sulfato de cobre. Até à segunda metade do século XIX, o verde de Scheele entrou na composição de papéis e tintas de parede, peças de vestuário, velas de cera, brinquedos, assim como corante em receitas de doçaria e em bebidas. Para deleite -- e azar -- de muitos comensais, a cor assassina resplendia nos ingredientes de receitas como o manjar verde, particularmente apreciado entre os escoceses. De tal ordem se manifestava letal a natureza dos componentes de verde de Scheele que na década de 30 ainda se mantinha na composição de inseticidas..DestaquedestaqueA Carl Scheele devemos a descoberta de elementos químicos como o cloro, bário, manganês, tungsténio, assim como de diversos compostos químicos, como o ácido nítrico e o glicerol.Matilda, tal como milhares de outros trabalhadores em diferentes países europeus, passara os últimos anos da sua vida com as mãos mergulhadas no pigmento letal. Sobre a cor nefasta já antes se pronunciara o higienista francês Ange-Gabriel-Maxime Vernois, que em 1859 identificara o pó verde brilhante nas mãos, unhas, antebraços e cotovelos dos utilizadores do verde de Scheele. Estes apresentavam crostas e ulcerações na pele e grande concentração de cicatrizes nas pernas. Um envenenamento silencioso que transcendia a via cutânea. Sob determinadas condições de humidade, miasmas de verde tóxico infiltravam-se nas vias respiratórias, para depois se acomodarem nos pulmões. Jornais da época relatavam a situação de crianças que definhavam em quartos decorados a verde, os desmaios de quem usava roupa tingida de verde, a libertação de vapores tóxicos no processo de produção de papéis. Uma festa de Natal onde foram queimadas velas verdes saldou-se num considerável número de crianças com envenenamento agudo. Nas artes e decoração, o Romantismo impunha como estética em papéis de parede a reprodução de elegantes enfeites com videiras e morangueiros, multiplicando os tons de verde. Por seu turno, William Morris, designer, poeta e ativista socialista inglês do século XIX, associado ao movimento artístico britânico Arts & Crafts, alternativo à mecanização e produção em massa, afirmava-se um defensor do verde de Scheele. Nos salões este debilitava e matava silenciosamente, à boleia de vestidos vaporosos, coletes, sapatos, luvas e calças. Na época, a britânica Ladies Sanitary Association procurava aumentar a consciencialização sobre os perigos de vestir com a cor verde..Sobre o uso de roupa verde, escrevia em 1862 o British Medical Journal: "A fascinante portadora dele [verde de Scheele] pode ser chamada de criatura assassina. Na verdade, ela carrega nas suas saias veneno suficiente para matar todos os admiradores que pode encontrar em meia dúzia de salões de baile." Alison Matthews David calculou, na obra já citada, que uma peça de tecido com o comprimento de 18 metros poderia conter até 900 grãos de arsénico. Cinco grãos constituem uma quantidade letal para um adulto..Embora a proibição de pigmentos com arsénico tenha ganhado terreno na Europa das décadas de 1830 e 1840, nomeadamente na Alemanha e França, a utilização do verde de Scheele só cairia em desuso na década de 1860, em certos casos mais tarde. Nos anos de 1890, a última marca britânica de papel de parede a usar o verde de Scheele suspendeu a produção..Um século de doença e mortandade provocadas por uma cor é campo para inúmeras histórias em torno do verde de Scheele. E um destes episódios envolve uma personalidade nascida na Córsega em 1769, imperador dos franceses entre 1804 e 1814. No artigo "The Singular Case of Napoleon´s Wallpaper", publicado na revista New Scientist em 1982, David Jones, autor da peça, expõe exaustivamente uma teoria que associa a morte de Napoleão ao fatal verde de Scheele. A partir de 1815, no seu exílio na ilha de Santa Helena, Bonaparte residiu em Longwood House, uma casa com os quartos cobertos de papel de parede com o verde nefasto, que, longe, infetava as mãos das floristas, os salões londrinos e parisienses, as sobremesas escocesas, as festas de Natal do século XIX. A teoria reportada por David Jones defende que a morte por cancro do estômago atribuída a Bonaparte poderia dever-se à exposição ao arsénico. Amostras do cabelo do imperador revelaram quantidades significativas daquele elemento químico..Longe no tempo da carnificina propiciada pelo pigmento tóxico, a beleza do verde de Scheele cavalgou o cavalo de Troia do cromatismo digital para, neste século XXI, se imiscuir sem perigo em ambientes, publicações e moda. Aplique o leitor no motor de pesquisa online as coordenadas de cor RGB 71, 136, 0 e verá na sua plenitude a mortal "criatura" verde domesticada..dnot@dn.pt