Eis um dado revelador dos nossos tempos conturbados: a 9 de junho, a HBO decidiu retirar o filme E tudo o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, dos seus serviços de streaming, considerando que as suas "componentes racistas" justificam que um eventual regresso à respetiva programação (entretanto já anunciado, embora sem data) deverá ser enquadrado por algum tipo de explicação sobre o contexto histórico em que foi produzido; um dia depois, o mesmo filme surgiu a liderar a lista de vendas em DVD e Blu-ray da Amazon, integrando também o top 10 do iTunes nos EUA (em 5º lugar)..Há aqui uma ironia, amarga e doce, que vale a pena sublinhar. Dir-se-ia que um princípio fundamental do trabalho da crítica de cinema - pensar os filmes sem excluir as componentes específicas da conjuntura histórica, ideológica e simbólica em que foram gerados - passou a ser assumido por entidades que, tradicionalmente, se limitavam a comercializar esses mesmos filmes. Resta saber como é que isto acontece. E também porquê..Lembremos o óbvio: estamos a falar de um país em convulsão por causa do caso hiper-mediatizado de George Floyd, morto na sequência da abordagem por uma patrulha policial, a 25 de maio, numa rua de Minneapolis. O crime cometido desencadeou uma onda de protestos cujos efeitos são, realmente, transversais: a questão do julgamento e punição dos polícias envolvidos desemboca, assim, numa dinâmica social de enorme complexidade cujas componentes, escusado será dizê-lo, excedem a maior ou menor visibilidade de E tudo o Vento Levou ..E, no entanto, somos levados a detetar aqui um sinal de um processo de "julgamento" dos objetos artísticos que, de modos muito diversos, tem contaminado a vida secular do cinema. Um caso recorrente será O Nascimento de uma Nação (1915), de David W. Griffith, cujo estatuto de "clássico" não exclui que a sua vida pública seja regularmente pontuada por acusações de racismo, em especial por causa das formas de representação dos elementos do Ku Klux Klan..Outros exemplos da vida dos filmes na sociedade dos EUA podem ajudar-nos a perceber que cada caso é um caso. Que é como quem diz: a diversidade dos contextos aconselha a que não cedamos a generalizações fáceis e redutoras. Lembremos três desses exemplos, sugestivos, antes do mais, pelas diferenças que refletem:.- SCARFACE (1932) - Na altura do lançamento, o filme de Howard Hawks, centrado na personagem de um gangster interpretado por Paul Muni (inspirado em Al Capone), foi banido durante algum tempo em várias cidades e estados. Motivos apresentados: a representação da "violência" e a "glorificação" do crime..- A MULHER DE DUAS CARAS (1941) - Narrando um caso de adultério, o título final de Greta Garbo foi publicamente condenado pelo arcebispo de Nova Iorque, desaconselhando os católicos a vê-lo. Várias cidades baniram a sua exibição, algumas delas solicitando mesmo à Metro Goldwyn Mayer que "corrigisse" a montagem de determinadas cenas de modo a excluir os elementos "escandalosos" - o estúdio cedeu às pressões, mas o realizador, George Cukor, recusou-se a participar na remontagem..- A VIDA DE BRIAN (1979) - Realizado por Terry Jones, é habitualmente apontado como um dos momentos emblemáticos do humor dos Monthy Python. Suscitando protestos por causa da representação "ofensiva" de personagens e narrativas da tradição cristã, o filme foi interdito em algumas cidades americanas, tendo sido também proibido em países como a Noruega e a Irlanda. Em 2006, num programa do Channel 4 britânico apresentado por Stephen Fry, foi incluído na lista das "50 melhores comédias de sempre"..Que tudo isto é, de uma só vez, objetivo e relativo, prova-o o processo de reconversão valorativa do citado Scarface. Assim, em 1994, portanto mais de meio século depois da sua produção, o filme de Hawks deu entrada no chamado National Film Registry. A saber: o programa de preservação de filmes, considerados de relevante interesse histórico e cultural, da Biblioteca do Congresso dos EUA..Entenda-se: não se trata de sugerir que o "escândalo" de uma época passa a ser a "consagração" de outra; apenas de sublinhar os ziguezagues de perceção e avaliação da vida dos filmes (como, em boa verdade, das mais diversas manifestações criativas). Nem se trata agora, entenda-se também, de minimizar a urgência política e moral que enquadra as manifestações de protesto que se seguiram à morte de George Floyd..Creio, por isso, que vale também a pena perguntar o que é que essa urgência política e moral ganha com a supressão, ainda que temporária, de um filme como E tudo o Vento Levou. A meu ver, trata-se até de um objeto que ocupa um lugar decisivo, em diversos aspetos revolucionário, na evolução de Hollywood, das matrizes narrativas à utilização do Technicolor. Nada disso anula as eventuais discussões sobre as suas matérias ideológicas, mas creio que é sempre mais salutar não recalcar a própria pluralidade interior de que se faz um filme..Seja como for, e para lá dos pontos de vista pessoais, naturalmente também relativos e discutíveis, não será secundário recordar um dado institucional. Assim, o American Film Institute, na sua lista dos "100 melhores filmes americanos de todos os tempos", obtida através dos votos de "mais de 1500 líderes da comunidade cinematográfica americana", coloca E tudo o Vento Levou em 4.º lugar (após O Mundo a Seus Pés, Casablanca e O Padrinho, respetivamente de 1941, 1942 e 1972)..Mais ainda: creio que a questão se deve prolongar para lá de qualquer juízo de reconhecimento ou consagração. E relançar a pergunta de outro modo: mesmo que estivéssemos a falar de um filme genericamente apontado como medíocre ou historicamente irrelevante, que ganho resultaria da suspensão da sua difusão?.Como reconhecem os meios de informação dos EUA, a decisão da HBO de retirar E tudo o Vento Levou foi, em grande parte, motivada por um artigo de opinião de John Ridley publicado, no dia 8, no Los Angeles Times. Tem um título cujo apelo condensa o seu protesto: "Ei, HBO, E tudo o Vento Levou romantiza os horrores da escravatura. Por agora, retirem-no da vossa plataforma.".Ridley apresenta-se como assinante e admirador da plataforma HBO Max. Em qualquer caso, a sua argumentação, cuidadosamente elaborada, decorre do "momento em que todos estamos a avaliar o que mais podemos fazer para lutar contra o preconceito e a intolerância". É nessa perspetiva que refere como é "penoso" deparar com a disponibilização de um filme "que ajudou a perpetuar o racismo"..Convém lembrar que estamos perante a intervenção pública de uma personalidade de notável talento, nomeadamente na área do cinema: Ridley é detentor de um Óscar de melhor argumento adaptado pelo trabalho em 12 Anos Escravo (2013), de Steve McQueen. O seu primeiro romance, Stray Dogs, foi filmado por Oliver Stone, com o título U Turn/Sem Retorno (1997), um thriller com Sean Penn e Jennifer Lopez. Tem também mantido um trabalho regular na televisão, nomeadamente como criador e argumentista da série American Crime (2015-17)..Há cerca de três anos, tive oportunidade de entrevistar Ridley para o Diário de Notícias, precisamente a propósito de American Crime (entrevista publicada na edição de 30 abril 2017). Mesmo não escamoteando as diferenças de contexto, isto é, não querendo colocar na boca de Ridley palavras que ele não disse, permito-me citar uma das suas respostas, a meu ver mais significativas, sobre o contexto em que se processava o seu trabalho. Tendo em conta a diversidade de regiões geográficas e tipos sociais e psicológicos retratados em American Crime, tratava-se de saber se, hoje em dia, a televisão é mais capaz de dar conta dessas diferenças do que o cinema. A sua resposta: "Não sei, até porque na América temos condições para nos expressarmos e olhar as nossas questões. Em todo o caso, é verdade que, em televisão, encontramos muitas produções apostadas em mostrar a pluralidade das nossas raças, rostos e regiões.".Com muitos contrastes e, sem qualquer dúvida, muitas contradições, a história do cinema americano - desde pioneiros como Griffith até grandes cineastas contemporâneos como Spike Lee (cujo novo filme, Da 5 Bloods, estará disponível na Netflix a partir desta sexta-feira, dia 12 de junho) - é também uma história povoada por essas "raças, rostos e contradições". Se um filme, "bom" ou "mau", passar a existir apenas em função de um filtro "purificador" justificado pelas atribulações do presente, talvez só seja possível desencadear dois efeitos: primeiro, aumentar a faturação da Amazon e do iTunes, o que, como se compreenderá, não envolve qualquer escândalo; segundo, tratar o cinema, todo o cinema, como automaticamente suspeito de não satisfazer determinadas sensibilidades de um determinado contexto. Duvido que a proliferação dessa suspeição nos torne melhores espetadores da complexidade de E tudo o Vento Levou,