Venezuelanos votam em massa contra Maduro

Pelo menos uma pessoa morreu quando grupos armados dispararam contra multidão num dos mais de dois mil centros de voto na Venezuela. Governo de Maduro fez também simulacro de voto para a Constituinte
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"Estou aqui porque quero que a situação mude. Porque quero voltar para a Venezuela. Agradeço muito a Portugal, mas tenho toda a minha família lá."A venezuelana Anny Orta, há cinco anos em Portugal, era ontem à tarde uma das centenas de pessoas que faziam fila para entrar no café Epa Boarepa, na Parede, esperando cerca de cinco horas para poder participar na consulta popular simbólica organizada pela oposição venezuelana contra a Assembleia Constituinte convocada pelo presidente Nicolás Maduro. "Se há cinco anos era complicado viver lá, agora é impossível", explicou ao DN.

Em mais de dois mil locais de votação na Venezuela e 500 espalhados por mais de cem países onde há diáspora, as fotos partilhadas nas redes sociais mostravam por todo o lado as filas para votar. Aqui e ali a multidão pintava-se de amarelo, azul e vermelho, as cores da bandeira venezuelana, fosse em T-shirts, bonés ou bandeiras. Em Portugal, a participação ultrapassou as expectativas dos organizadores (a Associação Cívica de Venezuelanos em Lisboa - Venexos), com mais de sete mil votos, e na Madeira foi mesmo preciso instalar mais uma mesa de voto face à adesão. "A participação tem sido em massa, as pessoas querem mudanças, querem que o regime saia", afirmou o presidente da Venexos, Christian Höhn.

Os venezuelanos foram chamados a participar nesta consulta pela Assembleia Nacional, onde a oposição tem maioria, sendo o escrutínio organizado pela Mesa de Unidade Democrática (MUD), coligação que une todos os partidos opositores. Isto depois de Maduro ter convocado uma Assembleia Constituinte com o objetivo de mudar a Constituição de 1999, escrita no primeiro mandato do falecido Hugo Chávez - que também a tentara alterar em 2007, perdendo contudo o referendo, naquela que foi a única derrota eleitoral que sofreu. Na consulta popular, que surge depois de mais de cem dias de protestos nas ruas e quase cem mortos entre os manifestantes, eram feitas três perguntas: a primeira sobre a Constituinte, a segunda sobre o papel das Forças Armadas e a última sobre a realização de eleições livres.

"Não vamos deixar que a extrema-direita venezuelana se imponha e prejudique o nosso povo", disse o vice-presidente do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV, no poder), Diosdado Cabello. O responsável participou no simulacro de voto para a eleição dos 545 membros da Assembleia Constituinte, que será a 30 de julho. Este simulacro foi convocado pelo governo, com Cabello a falar "numa participação massiva de um povo que quer paz" e que "contrasta muito com o ódio da oposição". Nas redes sociais, também havia fotos de filas para participar no simulacro.

Na véspera, Maduro tinha feito um apelo a todos os venezuelanos para que "participem nos eventos políticos que estão convocados pacificamente, com respeito às ideias do outro, sem nenhum incidente". O presidente indicara, contudo, que a consulta da oposição não era mais do que um "pronunciamento político", lembrando que para ser legal tinha que ter sido convocada de acordo com as leis estabelecidas pelo poder eleitoral. Mas ao contrário do que Maduro pedira, houve pelo menos uma pessoa morta e quatro feridas em Cátia, uma região nos arredores de Caracas que sempre foi chavista, quando alegados grupos apoiantes do governo dispararam a partir de uma moto.

Chavistas também contra

"Nunca apoiei Chávez, mas agora a situação é pior. Conheço muitos que eram chavistas, até na minha família, e agora já não são", refere Anny, de 40 anos, que veio para Portugal com o marido (filho de portugueses) e com os dois filhos pequenos. "Tenho uma irmã que também tem dois filhos e teve de cruzar a fronteira com a Colômbia a pé para lhes poder dar as vacinas principais. Não há comida e tiveram de deixar de comer três vezes ao dia, só comem duas. E não podem sair de casa, sentem-se com medo e ameaçados", explicou sobre a situação no seu país.

Loredana, há quatro anos em Portugal, estava também na fila para votar na Parede. Dizendo nunca ter sido chavista, explicou que há muitos apoiantes de Chávez que estão agora contra Maduro. "Há muitos chavistas que não apoiam esta Constituinte porque um dos legados que Chávez deixou foi defender até à última a Constituição, apesar de a determinado momento também a ter tentado mudar. Ele apoiava-se nesse livrinho azul que toda a gente conhece, que levava para todo o lado. Agora este novo "presidente", entre aspas porque não o reconheço, quer fazer a Constituinte com o objetivo de mudar e obter mais poder do que já tem", indicou.

Sentado a descansar num banco depois de ter votado, o português João Martins Maio, que passou 40 anos na Venezuela e tem também nacionalidade venezuelana, admite que sempre votou Chávez. "Depois arrependi-me", lamenta, mostrando-se preocupado com a situação que vivem os imigrantes portugueses que ainda continuam lá. "A Venezuela para mim e para os portugueses que lá vivem é uma segunda pátria", reconheceu.

Ao lado de João, a emoção deixa por momentos Luis Maldonado calado. "Vim para Portugal há dez anos a fugir do meu país. Pensei que tinha de sair antes que a situação se pusesse pior e pôs-se mesmo pior", explicou. "Com toda esta gente, estamos a demonstrar que os venezuelanos querem mudanças", afirmou. "Vamos voltar um dia", diz-lhe João, quando Luis fica sem voz ao dizer que espera um dia poder regressar à sua terra.

Nas mãos, Loredana tinha um cartaz onde se lia em espanhol "Fora narcoditadura", falando nas ligações denunciadas pelos EUA de dirigentes políticos e militares venezuelanos ao tráfico de droga, assim como a citação "A luta de poucos vale pelo futuro de muitos". Está na fila com o marido e uma amiga portugueses, que não podem votar mas vieram dar o seu apoio. "Tenho muita fé e esperança de que isto dê a volta e que a Venezuela vai ter a liberdade que merece há muito tempo", afirmou. "O pior é que quando dizemos que as coisas já não podem piorar, elas pioram. Este governo tem uma habilidade incrível para causar dano a algo que já está estragado."

A esperança de que algo vai mudar parecia estender-se a todos os que aguardavam na fila ou que já tinham votado. "Estamos prestes a perder o país se não fazemos nada. Porque estamos numa ditadura e perdemos muitas liberdades. E se não fizermos nada vamos perder o país", afirma o cirurgião Eliecer Bastardo, que está de passagem por Lisboa de férias com a companheira, a enfermeira Aura Bustamante, e não hesitou em perder um dia de descanso para ficar na fila para votar. "Acho que o resultado vai ser positivo e esperamos que isto se traduza numa maneira pacífica de mudar o governo", acrescenta, dizendo que a mensagem será importantíssima sobretudo a nível internacional. "Tudo o que estamos a fazer é para o país não acabar numa guerra civil, que está prestes a acontecer", disse.

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