Venceu Madrid, perdeu Espanha
Vistos os factos, ninguém sai isento de culpas. Em boa verdade, parece até que todos os intervenientes fizeram os possíveis para levar a situação da Catalunha ao limite do irresolúvel. O governo minoritário de Rajoy esgotou o problema num roteiro constitucional sem nenhuma vontade de atirar para a mesa uma habilidade política que manifestamente não possui. Mesmo concedendo que os seus antecessores foram adiando uma solução de longo prazo com expedientes mais ou menos táticos, certo é que Rajoy acabou ultrapassado por toda a máquina pouco ortodoxa que montou o referendo do passado domingo, além de desautorizado depois de ter jurado que este jamais se realizaria dada a sua ilegalidade. A força policial foi a única forma de colmatar a total falta de controlo político que apresentou em todo este processo.
O governo catalão conduziu o roteiro unilateral sem consenso mínimo parlamentar, social e, como se está a ver, empresarial. Ficou refém de uma narrativa excessivamente vitimizadora e absolutamente cega quanto à metodologia que iria vergar as instituições espanholas, com o governo à cabeça. O radicalismo antissistémico de alguns partidos catalães - deriva que também vem marcando a política nacional - teve mais impacto do que se poderia calcular, queimando qualquer elo possível de diálogo que, eventualmente, pudesse antecipar-se ao unilateralismo do processo. A ligeira diferença de tom da declaração de Puigdemont nesta quarta-feira que passou prova a necessidade vital de se reencontrar esse denominador comum. Basta ler os sinais da economia regional para ser obrigado a levar tudo isto para uma posição de sensatez: 2600 empresas abandonaram a Catalunha nos últimos meses, os dois grandes bancos mudaram a sede social para as Baleares e Alicante, o líder da associação empresarial catalã a desdobrar-se em entrevistas apelando à negociação, os números do turismo a baixar, a Igreja católica a ser chamada a mediação nos bastidores, e nenhuma solidariedade europeia para com o independentismo unilateral. Qualquer semelhança com o roteiro que levou ao referendo na Escócia é a mais pura desonestidade intelectual. No mais, e se estiver a ler bem todos os dados, não me espantaria se Puigdemont colocasse o lugar à disposição na terça-feira, depois de, na prática, Madrid ter já confiscado os poderes do parlamento catalão pela via constitucional.
Nas conversas que esta semana pude ter em Madrid, houve sempre um vazio na apreciação do papel do rei, desaparecido em combate por demasiado tempo. Claro que encontrar um simpatizante da causa catalã em Madrid é como procurar uma agulha num palheiro, mas podia acontecer encontrar algum interlocutor jornalista, académico ou empresário que esboçasse uma crítica ao obscurantismo da coroa. Ninguém o fez. Tal como a imprensa, que nunca nesses dias levantou sequer a necessidade de convocar o rei Felipe a assumir um papel político que garantisse o regular funcionamento das instituições, necessariamente em consonância com a Constituição espanhola e o estatuto da autonomia catalã. Quando o rei veio finalmente a terreiro, muitos, como eu, terão pensado ir sair dali a solução mediadora, num assomo de protagonismo político que o momento crítico exigia e a recente história da coroa carecia. O chefe de Estado assim não o entendeu. Evitou uma declaração salomónica, optou por entrincheirar-se no debate, não condenou os excessos policiais, nem sequer teve o cuidado de se dirigir um minuto que fosse em catalão, idioma que domina, àqueles que ainda o toleravam e ansiavam por uma solução que fugisse tanto da inflexibilidade de Madrid como do radicalismo de Barcelona. Felipe VI recusou ser mediador e o conciliador num processo extremado e sem interlocutores que se reconhecem como legítimos. O rei de Espanha não esteve à altura do momento.
No meio disto, Rajoy foi vencendo nas várias frentes. Ao endurecer e encurralar o governo catalão pelas vias legais e económicas, expôs a falta de coesão política na Catalunha e passou a ouvir várias vozes a apelar à negociação, intermediação, a um passo atrás no independentismo agressivo. Contudo, ter vergado Puigdemont não significa ter travado uma futura revisão constitucional que acomode um Estado federal, o que, é preciso referir, não é do agrado de muitos no PP. Ou seja, Rajoy pode ter ganho esta batalha mas perdido, a prazo, outra dentro do seu partido.
Outra frente em que Rajoy aparentemente ganhou pontos foi ao garantir, com estrondo, o rei para o seu lado da trincheira. O apoio é relevante. Mas, mais uma vez a prazo, pode ter definido um quadro de menoridade institucional para a coroa, em face da renúncia do rei Felipe ao papel de mediação. Neste sentido, Rajoy e o rei podem ter aberto uma ferida mais profunda do que agora parece e uma nova frente de discussão entre os dois grandes partidos espanhóis sobre a validade da monarquia para a unidade saudável de um Estado plurinacional.
Por fim, Rajoy voltou a fragilizar Pedro Sánchez, colocado novamente sob fogo cruzado no PSOE, um sintoma que no imediato parece beneficiar o governo mas que, em boa verdade, tem tudo para alienar pontes necessárias no futuro próximo, absolutamente necessárias a um governo minoritário que queira aprovar orçamentos ou passar à história como o que forjou uma solução duradoura para os nacionalismos internos.
Madrid pode ter vencido estas batalhas, mas foi Espanha quem mais perdeu com tudo o que aconteceu.