Vêm aí os russos... e os chineses também!
Costumo recordar-me muitas vezes de uma história curiosa ocorrida em Portugal em 1974, logo após o 25 de Abril, quando eu estava em Coimbra a estudar Direito (curso que abandonei, para bem da minha sanidade pessoal). Segundo um jornal da época, ligado às forças fascistas em debandada, guerrilheiros cubanos estariam na Serra da Estrela, no âmbito de uma invasão do comunismo a Portugal. O pasquim exortava os habitantes da região, por isso, a pegar em armas para caçar os invasores.
Ainda não desisti de incluir esse episódio numa das minhas estórias. Mas preciso de complementá-la com um episódio atual: o "novo conceito estratégico da NATO". Como foi largamente difundido, a referida organização definiu a Rússia como a principal ameaça ao Ocidente, o que, convenhamos, de "novo" pouco tem. Mas o documento tem outra frase que, até agora, tem sido pouco ou mesmo nada destacada: "As ambições e políticas coercitivas da República Popular da China desafiam os nossos interesses, segurança e valores", afirmaram os líderes da NATO.
Desde logo, é preciso sublinhar que o recente documento da Aliança Atlântica confirma o que alguns sempre disseram desde o início da guerra da Ucrânia, a saber, que a armadilha montada pelo eixo EUA-NATO (com a subserviência da União Europeia) à Rússia faz parte de uma estratégia de médio e longo de prazo para impedir que a China suplante os Estados Unidos como principal potência mundial. Destruída a Rússia, como já ordenou o chefe do Pentágono, Lloyd Austin, seguir-se-á a China.
Ou seja, ao contrário do que candidamente acreditam aqueles para quem o mundo se limita ao seu quintal, o principal conflito global, neste momento, não é entre autocracias e democracias, mas é um conflito geopolítico entre a consolidação e o reforço do unilateralismo anglo-saxónico, com os EUA à cabeça e erroneamente chamado "Ocidente", e a possibilidade do multilateralismo.
CitaçãocitacaoDesde as Cruzadas que o Ocidente (...) se tem caracterizado por uma política expansionista e colonial. O 'novo conceito estratégico' da NATO é mais um passo nesse sentido. (...). As consequências dessa decisão são imprevisíveis, mas não parecem ser de bom augúrio para a humanidade.esquerda
Como as vozes ingénuas (estou a ser benevolente) que acreditam que existe neste momento um conflito mundial entre autocracia e democracia parecem precisar que se desenhe, a fim de perceberem o que de facto se passa, peço-lhes que avaliem, por exemplo, o que aconteceu com as "Primaveras Árabes". Até a própria Tunísia, onde tudo começou e que parecia o país onde a democracia tinha realmente pernas para andar, já degringolou. O indesmentível fracasso das "Primaveras Árabes" confirma, pois, que a implantação da democracia depende decisivamente das dinâmicas sociais internas, não podendo ser imposta de fora, mesmo que essa intromissão seja travestida de "revoluções coloridas".
O argumento que acabo de mencionar não é suficiente? Tenho de lembrar, então, que neste preciso momento o "líder do mundo livre", Joe Biden está a caminho de Riade, onde vai com o propósito de, conforme a própria imprensa ocidental (não, não é nenhum desses saites de desinformação russa que por aí pululam), "consolidar a parceria estratégica com a Arábia Saudita". Como se sabe, a Arábia Saudita, país que, entre outros, é o grande mentor do fundamentalismo islâmico, é uma "democracia" vibrante e indesmentível...
Desde as Cruzadas que o Ocidente (conceito que tem sofrido várias mutações ao longo da História, mas que se tem organizado predominantemente em torno do seu núcleo anglo-saxónico dominante, capitalista e imperialista) se tem caracterizado por uma política expansionista e colonial. O "novo conceito estratégico" da NATO é mais um passo nesse sentido. A organização mantém na sigla a referência ao "Atlântico Norte", mas já perdeu completamente o pudor de esconder as suas pretensões expansionistas globais, que atravessam toda a Euro-Ásia e chegam até ao Pacífico. As consequências dessa decisão são imprevisíveis, mas não parecem ser de bom augúrio para a humanidade.
Resta-nos, talvez, o humor. Um amigo que está em Portugal disse-me que vai ligar às televisões locais para pedir armas com urgência, a fim de se defender da invasão dos russos (e dos chineses) anunciada pela NATO.
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21