Velharias
Pertenço a uma família em que as mulheres têm tendência para a longevidade. A minha bisavó paterna - que, de resto, nunca dizia a idade - morreu com uns simpáticos 92 anos; e, quando o médico, horas antes do seu último suspiro, tentou a sorte perguntando-lhe pela milionésima vez quantos anos tinha, ela limitou-se a responder baixinho: "Vinte e cinco." E talvez na sua cabeça os tivesse: segundo a minha mãe, quando iam à Baixa e lhe dava o braço para atravessarem a rua, ela sacudia-o imediatamente, comentando: "Credo, menina! O moço e o cego, não." Já a minha avó - que cheirava ao pó-de-arroz da Madame Campos e trazia sempre entalado na manga um lenço de assoar -, alimentada a chá, canja e peixe cozido, com banho de imersão diário e sem noção do que era a ecologia, viveu até aos 94 anos. Nascida em finais do século XIX, teve o seu primeiro bilhete de identidade já depois do 25 de Abril; e, quiçá honrando a memória da mãe, jurava que lhe tinham acrescentado indevidamente dois anos aos que já tinha, mas que não sabia como reclamar. Sendo mãe do meu pai, foi curiosamente com a nora e os netos que decidiu ficar a viver quando o filho lhe anunciou que iria divorciar-se. Essa nora - a minha adorada mãe - não foge à regra e completou recentemente 95 anos. Tendo começado a fumar aos 15, resolveu deixar aos 85 (para quê, meu Deus?) e, antes de sofrer de degenerescência macular, lia o jornal de ponta a ponta, incluindo a necrologia, e pedia-nos livros emprestados todas as semanas; mas, se lhe levávamos um desses romances mais leves, telefonava, zangada, ao fim de dez páginas, a dizer que já passara a fase da literatura juvenil...
Estas três mulheres tiveram sempre por perto quem cuidou delas e as amou. Já eu, que hoje me torno sexagenária, estou preocupada: se a genética me favorece com a longa vida das minhas antepassadas, a verdade é que não sei se me apetece cá andar mais trinta e tal anos. Como referiu George Steiner, "os velhos deviam poder decidir quando morrer; já não há recursos para manter vivas tantas pessoas senis e dementes, vai contra a felicidade de muita gente (os jovens que têm de levar connosco) e não é justo". No meu caso, nem sequer tenho descendência que possa "levar comigo", mas também ignoro se isso chega a ser uma desvantagem: é que, só no primeiro trimestre deste ano, segundo a APAV, foram agredidos em Portugal mais de quatro mil idosos, e na maioria das vezes os agressores eram... os próprios filhos. Adeus, futuro.
Editora e escritora, escreve de acordo com a antiga ortografia.