Veio, viu e apenas começou a vencer
Quando o camião que conduzia os jogadores do Flamengo dobrou a esquina atrás da Igreja da Candelária e se pôs de frente para a Avenida Presidente Vargas, Jorge Jesus deve ter tomado um susto. Aos seus olhos, estava uma massa humana maior do que a população de Lisboa - cerca de um milhão de pessoas, 99% delas vestidas de camisolas em preto e vermelho, as cores do Flamengo. Ali estava também o reconhecimento de uma nação de 40 milhões de pessoas, número em que se estima a torcida do Flamengo e isto agora é oficial - segundo pesquisa recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), um em cada cinco brasileiros torce pelo Flamengo.
O Flamengo estava de volta de Lima, onde, na véspera, conquistara a Taça Libertadores da América - o equivalente sul-americano da Champions League, mas, como já contei aqui, muito mais selvagem e brutal - e, no dia seguinte, em plena comemoração do título, conquistaria, sem entrar em campo, o Campeonato Brasileiro. Todos naquela multidão, sem exceção, dir-se-iam apaixonados por Jorge Jesus, se lhes fosse perguntado.
O Brasil já acarinhou muitos portugueses que para cá vieram. De Pedro Álvares Cabral, só sabemos que aportou na Bahia em 1500, deu uma espiada pelos arredores, mandou rezar uma missa e tomou de volta o navio, em busca de novas terras --não ficou para ver o que resultaria de sua descoberta. Um membro de sua expedição, Pero Vaz de Caminha (1450-1500), tornou-se o nosso primeiro escriba, ao descrever em cartas para o rei D. Manuel o que tinha visto por aqui. "Em se plantando, tudo dá", escreveu, sem esquecer as indígenas, de "vergonhas tão saradinhas". De outro português daquele tempo, o religioso Pero Fernandes Sardinha (1496-1556), primeiro bispo do Brasil, sabe-se que foi muito apreciado - tanto que os índios caetés, da capitania de Pernambuco, o capturaram e devoraram com batatas.
A história regista a passagem por aqui, profícua e prolongada, de homens como o capitão-geral e vice-rei Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela (1685-1763), construtor de conventos, aquedutos e chafarizes no Rio e responsável militar pela expansão das nossas fronteiras no sul do continente.
Outro vice-rei, D. Luiz de Vasconcellos (1742-1809), foi o amoroso criador do primeiro espaço público de lazer do Rio e do Brasil, o Passeio Público - que ele construiu por amor (não correspondido) a uma jovem que vivia nas proximidades. D. Luiz foi também o construtor da Casa dos Pássaros, que daria origem ao Museu Nacional, e tinha suas mãos beijadas nas ruas do Rio, por onde perambulava em companhia de mestre Valentim, grande escultor. Infelizmente, foi em seu tempo que se deu a Inconfidência Mineira, movimento de libertação que levaria ao enforcamento e esquartejamento do alferes Tiradentes, líder da conjura.
E, em fins do século XVIII, tivemos no Brasil a longa presença do padre António Vieira (1608-1697), que aqui morreu, depois de escrever boa parte dos seus Sermões, um dos ápices da língua.
A partir de 1808, herdámos, como se sabe, a família real portuguesa e, hoje, os melhores historiadores brasileiros não se cansam de louvar as virtudes do príncipe regente D. João, futuro D. João VI, e do príncipe D. Pedro, nosso Pedro I e IV de Portugal. De ambos basta dizer que circulavam pelo Rio com desembaraço, sendo o jovem D. Pedro um habitué dos camarins das atrizes de teatro, com quem mantinha ardentes tertúlias.
Mais modernamente, em princípios do século XX, Portugal mandou-nos uma maravilha: a miúda Carmen Miranda, que aqui chegou com poucos meses de idade, vinda do Marco de Canaveses, e cresceu, até chegar a 1,51 m, para se tornar a maior estrela do Brasil no mundo.
Na era salazarista, o Brasil recebeu muitos escritores portugueses antifascistas, como Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro e Jaime Cortesão, os quais tiveram tempo para deixar a sua marca na literatura brasileira. E, graças ao embaixador brasileiro em Lisboa, Álvaro Lins, o Brasil deu abrigo em 1959 ao general Humberto Delgado, num episódio histórico para a diplomacia dos dois países. Como o princípio do asilo não pode ter cor política, o Brasil receberia também os salazaristas Américo Tomás e Marcelo Caetano e o general António de Spínola na esteira da Revolução dos Cravos, em 1974.
E, agora, temos finalmente Jorge Jesus, que para cá veio motivado por um desafio - de assumir uma equipa brasileira de futebol, o Flamengo, que, por mais glórias que tivesse a nível nacional, já estava passando da hora de se afirmar de vez pelos padrões do estrangeiro. Pois Jorge Jesus veio, viu e apenas começou a vencer - apenas começou, eu disse. Depois de conquistar os campeonatos brasileiro e continental em cinco meses de trabalho, espera-o agora a disputa, no Qatar, em dezembro, do Campeonato Mundial de Clubes da FIFA, formado pelos campeões dos vários continentes. A Europa será representada pelo Liverpool - o mesmo Liverpool que já foi derrotado, em 1981, pelo Flamengo, no Torneio Intercontinental que se jogava então.
Sim, alguns treinadores brasileiros, defensivistas, medíocres e mortos de inveja, duvidaram de Jorge Jesus. Guardem esses nomes para o caso de algum deles, um dia, querer trabalhar em Portugal: Mano Menezes, Abel Braga, Alberto Valentim, Vanderlei Luxemburgo e o próprio Renato Gaúcho. Mas falaram em vão, porque, diante dos primeiros triunfos e títulos de Jorge Jesus, já tiveram de engolir as suas palavras.
O Flamengo espera que essas palavras os engasguem, lhes caiam mal e lhes provoquem grandes constipações.
Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Metrópole à Beira-Mar - O Rio Moderno dos Anos 20 (Companhia das Letras).