Vamos falar de remunerações nos serviços públicos?

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No dia em que foi pública a contratação pelo Ministério das Finanças de Sérgio Figueiredo como consultor, com uma remuneração equivalente à de ministro, um amigo meu, de competência e seriedade imbatíveis, recusava com grande tristeza um cargo de direção superior numa entidade pública nacional de referência para o qual fora convidado. Porquê? Porque verificara que o seu salário seria em torno dos 2000 euros e, vivendo a mais de 250 quilómetros de Lisboa, e uma vez que era natural e pressuposta a exclusividade de funções e a permanência na capital, isso não chegaria sequer para pagar o arrendamento de uma casa adicional em Lisboa, mais combustível e portagens, querendo ver a família e amigos ao fim-de-semana, esse luxo asiático.

Devo dizer que não me escandaliza especialmente a contratação de um antigo jornalista, que já foi até administrador de entidades relevantes no setor privado, para consultor de um ministro. Nem sequer a sua remuneração. A mescla de inveja e de pequenez que também borbulha nas redações assegura que qualquer jornalista que mude de vida profissional e ganhe bem será sempre, para alguns, um enorme patife. A sua remuneração viu até aplicada a regra de que, quem esteja ao serviço de um ministro, não pode ganhar mais do que esse membro do governo (e, como os ministros ganham pouco, isto tem significado que pessoas do universo público, desde logo juízes e procuradores, ou do setor privado, têm visto os seus proventos reduzidos, por vezes em parte substancial, ao aceitarem essas funções públicas temporárias).

Posso achar exótico, contudo, o seu objeto afiançado de trabalho, a monitorização e avaliação de políticas públicas, uma expressão da nossa narrativa burocrática chique, para o qual se criou precisamente em 2021 uma nova estrutura na Administração Pública, o PlanApp - Centro de Competências de Planeamento, de Políticas e de Prospetiva da Administração Pública, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros e não do Ministério das
Finanças. E, curiosamente, o salário do próprio diretor deste PlanApp, cargo sujeito a concurso, é o de diretor-geral dos serviços da Administração, muito inferior ao de ministro.

Mas, enfim, seguramente que o governo, qualquer governo, também há de ter algum direito a escolher algumas pessoas que quer a trabalhar para si... Sob pena de se institucionalizar uma pool de comentadores televisivos a assumir as funções de comissão de recrutamento para funções públicas e um salário máximo de 100 euros por mês, ao gosto da mesquinhez populista.

O problema fundamental - e contra ele poucos se revoltam - é que, para a generalidade dos serviços públicos e para funções governativas, o recrutamento, desde logo pela sua componente remuneratória, tornou-se extraordinariamente difícil.

Na prática, é preciso já viver em Lisboa e ter alguma fortuna pessoal para se ser diretor-geral ou subdiretor-geral de um departamento do Estado, funções de enorme responsabilidade e intensidade, sempre temporárias e sujeitas a concurso público.

Este é um risco imenso e sistémico para a qualidade dos dirigentes e, é preciso também dizê-lo, para a prevenção da corrupção. O mesmo se aplica, naturalmente, aos quadros técnicos ao serviço do Estado. A "geração mais qualificada de sempre", entrando com licenciatura ou mestrado para um serviço público, tem à sua espera 800 euros por mês. Talvez isto esteja mais em linha com as expetativas miserabilistas das conversas de café e dos debates televisivos. Mas não deixa por isso de ser um perigo e uma injustiça, pelos quais todos os dias, todos nós, pagamos caro


Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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