Valter Hugo Mãe: "Herberto Helder enerva-me, por isso não está neste livro"

Mais conhecido como romancista, Valter Hugo Mãe já publicou treze livros de poesia (e sete romances). Agora, para a edição de uma antologia que deseja definitiva, eliminou mais de metade da obra poética - até livros inteiros. Um hábito repetido, pois há uns anos também rasgara quase todas as fotografias antigas da adolescência para não ver as poses idiotas próprias da idade.
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O ano 2007 revelou o poeta Valter Hugo Mãe como veio ao mundo - mais o que cresceu - ao fazer a capa do livro pornografia erudita com a fotografia de um nu tão frontal como total. Quando se compara com a nova capa da antologia definitiva da sua poesia, a diferença é como o abismo que engoliu metade do que escreveu neste género. Confessa que não necessita hoje dessa ousadia: "Não o faria, nem sinto a necessidade dessa catarse, mas na altura foi importante. Havia um grito de libertação e um despojamento na fotografia que implicava destituir-me da minha timidez e normalizar-me. Exposto daquela forma, não era esdrúxulo nem revelava nada diferente do mundo dos homens." Poucos poetas se "banalizaram tanto", diz, mas recorda que Allen Ginsberg fez uma fotografia nu na praia: "Há uma retórica da nudez na poesia e assumir-se o poema como um desnudamento. O que fiz foi só ter a coragem de ser o poeta nu." Quanto a autores que o influenciam, existem novas companhias: "Aos 20 não conhecia alguns que aos 35 tornaram-se estruturais e obsessivos nas minhas leituras."

Nasce em Angola, Saurimo, em 1971. Licencia-se em Direito e faz pós-graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Em 1996 publica o primeiro livro de poesia e em 2007 recebe o Prémio José Saramago, com um grande elogio do Nobel. No Brasil, torna-se famoso de um dia para o outro após chorar numa sessão da FLIP. Quando se lhe pergunta se foi marketing ou é uma característica pessoal, responde: "Chorar é uma constante pois sou comovido por natureza. Quando chorei no Brasil foi talvez a centésima vez que o fiz em público, mas foi a primeira vez que se tornou notícia. O mais certo é continuarem a ver-me chorar aqui e acolá porque não vou conter-me.

Esta é uma antologia de um poeta que se bandeou para a ficção?

Essa pergunta faz-me sentir leviano, porque este hiato entre livros de poemas pode ser explicado pela traição. Há qualquer coisa na prosa que se tornou tão ofuscante que não me desmotivou da poesia mas entregou-me à prosa, onde os versos acabaram por aparecer dentro dos romances sob disfarce.

Os dois últimos romances são eminentemente poéticos...

São e acusavam essa ansiedade de regresso ao verso, porque há uma intensificação poética da imagética, da pulsão lírica e das próprias histórias mais permissivas e livres como são as do foro da poesia.

Os poemas inéditos não estão identificados. Qual a razão?

Misturei-os porque a vontade é aniquilar as edições anteriores e apresentar esta como uma versão absoluta que se impõe sobre os anteriores e pretende ser a verdade.

Não evita a palavra "deus" nos três primeiros poemas. Porquê?

É verdade. Talvez a poesia seja o diálogo supremo e o interlocutor da poesia deva ser sempre deus e não qualquer outro. É dos vocábulos mais poderosos que se pode usar, porque aciona mais sentidos e convoca a resposta última.

Esse vocábulo está em minúscula, tal como toda a poesia deste livro...

Não vejo porque alterar na poesia pois todos os meus poemas foram escritos e publicados assim. Na prosa sim, passei a usar as letras capitais. A poesia é uma oficina muito livre onde as bizarrias são a normalidade. Obedecer a regras não é o propósito do poema.

Tal como não usa o novo Acordo.

Tenho problemas com o Acordo Ortográfico porque gosto da etimologia das palavras e que acusem a família de onde vêm. Não que me aflija que caia um "C" ou outro - não me alimento dos cês -, mas há opções que foram precipitadas e transformam a língua portuguesa num exercício mais deselegante e que não quero nos meus textos. Devemos pressionar as autoridades para que o Acordo seja revisto.

Os escritores terão essa força?

Parece-me que não, aliás nem o Bloco de Esquerda teve força para renovar o debate. Os políticos fecharam-se para a questão e tudo vai assentar, pois os jovens nem percebem a pertinência da discussão e quando acedem aos nossos textos é como a coisas antigas. Para um jovem de 15 anos o livro que publico hoje é do século passado.

Teve um poema em que dialogava com Herberto Helder. É um deus?

É verdade... O Herberto Helder foi para mim das figuras mais iluminantes do mundo e vivi com a ansiedade de o poder conhecer. Mas o Herberto não era acolhedor. Cheguei a falar com ele por telefone umas duas vezes e até lhe bati à porta - teria uns 26 anos -, e falámos pelo interfone. Não abriu a porta nem me quis receber. Disse que só queria apertar-lhe a mão e ter o privilégio de olhar a cara dele uma única vez; recusou e disse que não desceria nem abriria a porta. Depois disso, disseram-me que estava sempre num café, mas achei que não me competia aproximar mais dele. Foi o que fiz, deixei-me estar. Magoou-me e vai magoar-me a vida toda o facto de ele não ter tido normalidade suficiente para me cumprimentar, mesmo que continue a ser uma personagem divina no meu universo.

O poema não está nesta antologia!

Não está e nem desgosto dele, mas o Herberto Helder enerva-me e por isso não está no livro.

Este livro assume-se como Obra Reunida. Porque não Completa?

Eu queria mas o meu editor não deixou devido à escolha tão severa que fiz, deixando tanta coisa de fora. Queria que fosse a obra que aceito e a restante fica como que renegada. Talvez seja mais honesto definir como Poesia Reunida.

Quais foram os livros mais sacrificados nesta recolha?

Há um chamado bruno que não tem nem um verso salvo; depois o livro de maldições teve um corte drástico; o o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas foi diminuído em 90%; do três minutos antes de a maré encher tirei 50%; o estou escondido na cor amarga do fim da tarde foi todo para o lixo; o mesmo com egon schielle e o entorno a casa sobre a cabeça; os dois primeiros foram mesclados e sobra pouco deles... Acho que fiz um corte de 50% nos poemas - e gosto de o ter feito.

Isso na prosa jamais acontecerá?

Nunca, não tiraria nenhum capítulo de nenhum livro. A prosa acontece-me noutro tempo e idade e atinge-me mais maduro. A poesia começa muito cedo e foi usada por mim de um modo experimental que não é mais necessário hoje. Estão lá, pode ser interessante revisitar como curiosidade mas pertence a outro tempo. Levei muito a fazer esta escolha e, dificilmente, prevejo que faça outra. Talvez possa é retirar ainda mais poemas.

Ficaram alguns provocantes, como o poema Coisinhas preciosas para meter no cu...

Tem um título terrível, mas é um poema muito especial porque foi escrito para um rapaz que pediu para falar comigo no fim de uma conversa pública com vários alunos e disse-me - em frente a toda a gente - que pensava matar-se porque o pai não o deixava ser maricas. Eu, agarrado a um ramo de flores que me tinham dado, num momento tão desadequado para ouvir um miúdo de 14 anos dizer aquilo, senti que era tão violento que precisava de encontrar uma estratégia para o ajudar.

Quando escreve é para o leitor ou para si?

Para mim praticamente em todos os livros que escrevi, porque faço-o num estado de entrega em que duvido estar a fazer algo entendível e interessar a mais alguém.

O que está a escrever agora?

Nada, apenas coleciono coisas. Encontro-me numa altura em que estou numa gestão das seduções e a perceber sobre qual projeto me vou inclinar ou se esqueço tudo e encontro um novo. Não me quero comprometer de imediato, vivo como se fosse o fim de uma relação.

A maior parte da nova geração de autores tem a mania de publicar um livro por ano. Não está preocupado em ser ultrapassado?

Quero muito que eles sejam felizes e acho que sete romances já são muitos. Há colegas que começaram depois de mim e já terão quase o dobro de romances, mas eu não quereria publicar um a cada ano. Não acreditaria que trouxesse novidade suficiente e que me sentisse seguro com o percurso.

Já se pode falar desta nova geração do terceiro milénio com mais clareza. É uma geração de grandes escritores ou apenas publicam?

A impressão que tenho sobre o que aconteceu de melhor desde 2000, e que parece mais desgarrado do que vinha de antes, tem a ver com a poesia das mulheres. Há finalmente uma poesia feminina, que é uma reclamação de liberdade, e uma grande novidade para o percurso histórico da literatura a que assistimos. Podem ser muito inspiradas na Adília Lopes, mas é um número muito grande de poetas que impõem um ciclo como nunca aconteceu. Que estão preocupadas em tomar conta de si mesmas e não num feminismo ou numa retaliação, antes a preponderância da mulher desimportada com o que os homens possam pensar. Há alguns rapazes poetas a aparecer, mas como um todo o poder da poesia feminina é maior.

Fala muito da idade e um dia destes fará 50 anos. Vai ser trágico?

Vai, ainda só estou a fazer 47 e já está trágico. Já me dói tudo, sinto fanicos no coração e alimento-me mal. A velhice não é boa para quem não tem juízo. Vou fazer 50 anos enraivecido e só farei uma festa por causa das prendas.

Os últimos romances passam-se em países longínquos. Quando é que vai deixar Portugal?

Já pensei em sair daqui, não para abandonar o país por cansativo ou insuportável, mas pela atração da experiência estrangeira. Que é um traço muito português.

Quando houver outro Nobel para Portugal é para prosa ou poesia?

Gostava que dessem a um poeta, mas os grandes poetas estão a morrer e teremos de esperar pelos novos. Talvez o Tolentino [Mendonça], que é um poeta que cresce e que admiro cada vez mais, seja o próximo Nobel português dentro de uns anos.

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