Vais prà escola, leva a cola!

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E, de repente, as mães começavam a dizer "leva um agasalho, que eles dizem que isto hoje vai estar fresco", e os miúdos da rua já não se juntavam todos no muro da casa abandonada depois da praia, e o fim do verão era um arame gelado a atravessar-nos a barriga - os adultos chamavam-lhe ansiedade e melancolia -, essa inquietude de cadafalso imposta no fim da estação, igualzinha ao vazio das tardes de domingo antes de um teste marcado para a primeira aula de segunda-feira. A miúda que conheceste nas férias voltou para a sua cidade e a hipótese de que, em breve, voltes a tocar num par de mamas - foram as tuas primeiras, era de noite, estavas na praia, ela teve de te ajudar a desapertar o sutiã - parece tão improvável como as cartas que prometeu escrever-te, mas que nunca chegaram na volta do correio.

O teu professor de Português, que também arbitrava os jogos do campeonato do colégio, chamar-lhe-ia spleen, essa modorra existencial que atormentava as personagens queirosianas e que chega com o arrefecimento da temperatura climática e do sangue e das feromonas. Os dias outra vez mirrando e escurecendo, as bolas-de-berlim muito mais convencionais e aborrecidas na montra de uma pastelaria do que na cesta do vendedor da praia, a perspetiva dos TPC esmagando a certeza do poeta do bigode, de quem até gostavas - "Ah que prazer/ Não cumprir um dever" -, e toda a mística estival estiolando como a tua pele, a certeza de que o carácter épico das férias grandes - mamas, saltos mortais da prancha, fumar um Português Suave clandestino, ir para a cama depois da meia-noite - seria substituído por mais um ano letivo.

Havia, no entanto, a possibilidade de haver repetentes na turma, mais velhos e mais fortes, que reforçariam a equipa de futebol com o seu pontapé canhão - o He-Man, o Matacão, o Mau -, tal como a diversão de atribuir novas alcunhas - o Alf, o Mongoloide, o Crânio - ou a certeza de que a cada período haveria uma moda a cumprir: lutas de elásticos e grampos, disparar papel ensopado de cuspo pelos canhões das Bic sem carga, a coleção de cromos de um Mundial, o jogo Kick Of no Commodore Amiga ou as miúdas da escola vizinha que combinavam encontros no jardim do casino, sempre impecavelmente apetecíveis, com as suas meias até ao joelho e camisas brancas com mais botões do que gostaríamos, insinuando promessas de que, na sessão de domingo no Cinema Oxford, durante o Regresso ao Futuro, passariam dos chochos aos linguados.

O teu colégio não tinha raparigas e, no início do ano letivo, todos sonhavam que para o ano é que era, que os padres tinham de perceber as vossas necessidades de convivência diária com miúdas, que mais de mil gajos, em idade escolar, que corriam para o recreio alarvemente a fim de protagonizar brincadeiras como o poste, o corredor ou a maria, se comportariam muito melhor na companhia feminina, que as salas não cheirariam tanto a peidos e a suor, que haveria menos cenas de mocada e tráfico de Ginas e de Tânias.

Tinhas professores completamente chanfrados, o S.G., cujas mãos pareciam asas que disparavam lambadas, e que vos proibia de entrar na sala com camisolas à cintura - "És uma miúda? Usas saias? Isto é uma escola para homens!" -, obrigando--vos a ter sempre uma caneta vermelha porque, dizia ele, "não vou gastar a minha tinta a corrigir os vossos erros". Ou o Barata, que lia O Diabo nos intervalos, um anticomunista topo de gama que perdera tudo com a independência de Moçambique e que mandava arrancar as páginas dos livros contaminadas pela doutrina do Álvaro Barreirinhas Cunhal, intitulando as chamadas ao quadro de "torniquete". Ou o Bagaço, bêbedo nas aulas e fora delas, a quem os rapazes riscavam as costas do casaco de camurça, e que gostava de mandar filas inteiras para a rua.

Havia, a cada ano escolar, a obediência e a insurgência, a repetição mas também a impressão de estares a avançar para um objetivo grandioso, tão irreal como viajar no tempo com o Michael J. Fox - ir para a faculdade, sair de casa um dia, ser adulto, uma realidade que desconhecias, mas que embelezavas e romantizavas tal e qual como fazias ao imaginar o fecho do sutiã desapertando--se nas tuas mãos.

Hoje, antes de sair para a rua, ainda que sozinho em casa, tens a certeza de que ouves alguém gritar da cozinha "leva um agasalho, que eles dizem que isto hoje vai estar fresco". Os miúdos do prédio da frente, fardados, esperam no passeio a carrinha da escola. O céu diz-te que ainda é verão. Mas o vento nas árvores e a timidez dos pássaros garantem que é tempo de tirar os casacos do armário, de enfrentar o tal frio na barriga e a ordem natural das coisas: mais uma ficha, mais uma voltinha, e daqui a nada já é Natal outra vez.

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