Vai rolar uma praia
Na terça-feira passada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro fez 450 anos e o feriado foi celebrado na praia - a densidade populacional na areia faria Tóquio parecer um lugar espaçoso. Nada mais carioca do que passar a vida na praia, sem trabalhar, ou pelo menos essa é a imagem propagada. Mentira, até porque a maioria da população vive longe da praia e trabalha muito (nem sempre bem), penando todos os dias nos transportes públicos sobrelotados. A visão do carioca de sunga e lata de cerveja na mão é mais um dos mitos sobre o Rio. Durante os fins de semana de verão, os moradores da Zona Norte até podem desembarcar massivamente em Copacabana, Ipanema e Leblon porque o metro chegou, por fim, à Zona Sul, o que levou alguns habitantes destes bairros, de classes mais altas, a se oporem à "popularização" da sua orla marítima e das suas ruas. Mas a praia não é uma comodidade diária para milhões de cariocas.
(Os moradores da Zona Norte podem, no entanto, recorrer ao Piscinão de Ramos, um megarrecinto, tão apinhado como as praias e os ônibus, onde se aplica a infantil - mas comum - lógica dos traficantes. Porque o Piscinão fica no território da organização criminosa Terceiro Comando, os banhistas não podem usar roupa encarnada uma vez que representa o bando rival, o Comando Vermelho. Houve quem fosse espancado por esquecer a norma).
Num domingo de calor, as praias da Zona Sul são o lugar mais democrático e emblemático do Rio. Famílias numerosas de negros partilham a escassez de espaço com madames do Leblon, espetros alvos, botoxados e lambidos de protetor 70. Os peitos turbinados pelos melhores cirurgiões convivem com bundas imensas e barrigas gelatinosas. Nesses dias, a praia é esmagadoramente negra - e só então a Zona Sul reflete a real demografia do Rio, onde os negros são maioritários em número e minoritários em recursos.
Mas a alma praiana do Rio não reflete apenas a pletora de biótipos e a pirâmide social. Os cariocas são entusiastas da natureza e do desporto, e a faixa de terreno entre a ciclovia do calçadão e a beira-mar é uma arena de infinitas atividades, de esquis com rodinhas a skates motorizados, do futevólei ao frescobol (raquetas), uma constante sensação de movimento e engenho físico que encontra a sua excelência nos artistas do "altinho" (uma roda em que não se pode deixar cair a bola de futebol). Há jogadores com uma técnica de circo, mas nada bate as talentosas garotas de biquíni e de rabo de cavalo que fazem de um toque de calcanhar, ao pôr do Sol, algo de surpreendentemente belo e sensual.
(O jeitinho de ser carioca: foi proibido o jogo do "altinho", mas ninguém prestou caso. E sempre que se aproxima um guarda municipal começam os assobios, um aviso que se desenrola pela praia para que todos parem de jogar. O mesmo acontece entre os fumadores de maconha. Assim que o guarda se afasta, as bolas voltam a saltar e os charros são reacendidos.)
Do Leme ao Leblon, a praia é um mercado. A economia na areia gera milhões e dá emprego a milhares. Não há um minuto sem que se oiça um pregão - mate, esfirras, jornais, cangas, óculos escuros, biscoitos Globo, gelados, biquínis, vestidos, abacaxi, capas para as latas de cerveja com as camisolas dos clubes do Rio ou os psicadélicos hambúrgueres Hare Hare com "cheddar alucinante para ajudar na transferência dos mundos internos em circunstâncias giratórias (...) e mostarda transcendental".
A praia é mais um bairro da cidade, onde não se vai apenas para torrar a pele e arrefecer o corpo na água, mas para socializar, trabalhar, "malhar", "paquerar" - uma lembrança do melhor desta cidade, algo grátis num lugar onde tudo é ofensivamente caro. Tampouco se pode dizer que esta seja a praia do paraíso - ela espelha bem a vida carioca: os "arrastões" repetem-se, o lixo continua a ser atirado para a areia e uma minimanifestação a favor do topless - proibido por lei - gerou, como em vezes anteriores, uma multidão de homens de mirada obtusa, para quem ver uma mulher "pagar um peitinho" (como aqui se diz) parece instigar uma curiosidade boçal que a bunda amplamente adorada não desperta.
Na pedra do Arpoador, as pessoas batem palmas quando o Sol se funde no mar diante do Morro Dois Irmãos, e o horizonte violeta, rosa, em fogo parece obliterar o cimento e o estertor da cidade. Para muitos cariocas, a praia é um tónico, um escape, uma dádiva e menos duzentos reais numa hora de terapia. Por vezes, parece ser a razão para ficarmos nesta cidade. Noutras, apenas uma atenuante para a suportarmos.
PS: Como manda a tradição carioca troquei a toalha pela canga, mas, viva eu no Rio de Janeiro até aos 100 anos, fica a promessa: jamais me verão de sunga.