No Relatório da Primavera 2019, o Observatório analisou a reforma dos cuidados de saúde primários ao longo dos seus 13 anos de evolução e concluiu que é necessário um "novo impulso"..Os autores do Relatório, que é apresentado esta quinta-feira em Lisboa, entendem que devem ser considerados uma prioridade "os utentes sem equipa de saúde", a fim de evitar uma "dupla penalização" e não agravando as desigualdades em saúde..Atualmente há ainda cerca de 700 mil utentes em Portugal sem médico de família atribuído, sendo que era objetivo do Governo dar médico de família a todos os portugueses..Nas recomendações para um novo impulso da reforma dos cuidados de saúde primários, o relatório pede que sejam garantidas condições de trabalho essenciais e de qualidade a todas as unidades, sejam centros de saúde tradicionais ou unidades de saúde familiares (USF)..É ainda necessário dar mais autonomia às unidades de saúde, com uma gestão mais descentralizada, considerando que a organização assente em grandes agrupamentos de centros de saúde dificulta a proximidade com os utentes. O Observatório destaca, contudo, a "melhoria da qualidade dos cuidados de saúde prestados" e dos indicadores de desempenho nos cuidados de saúde primários, sobretudo devido a novos processos de contratualização.."O modelo de contratualização tem caminhado no sentido de se descentrar da atividade assistencial para se evoluir para um modelo que concilia a centralidade do cidadão com dimensões que valorizam a progressão para a excelência das equipas. Tem também o mérito de alargar os incentivos institucionais a todas as unidades que alcancem melhores resultados de desempenho", refere o documento, a que a agência Lusa teve acesso..O Observatório Português dos Sistemas de Saúde é constituído por investigadores e instituições académicas dedicadas ao estudo dos sistemas de saúde e analisa há 19 anos o sistema de saúde em Portugal..População idosa sem cuidados de saúde.O mesmo relatório aponta para o facto de quase metade dos concelhos de Portugal Continental não tem ainda unidades de saúde familiares (USF) e é nesses que há população mais idosa, menos poder de compra e um nível educacional inferior..No documento, os autores manifestam preocupação com as desigualdades no acesso aos cuidados primários, por se perpetuar a prestação de cuidados em "dois níveis", com as USF a terem "consistentemente um melhor desempenho".."Verificamos que, de uma forma global, a população residente nas áreas geográficas da área de influência dos centros de saúde tem uma proporção significativamente maior de idosos (...) e um nível significativamente inferior de educação, de rendimento e de poder de compra do que a população residente na área de influência das USF", refere o Relatório da Primavera 2019, a que a agência Lusa teve acesso..A criação das USF tem caráter voluntário, dependendo da vontade dos profissionais de saúde em se organizarem em equipas para formar estas unidades, o que "pode estar na origem de uma distribuição desigual ao nível do país". Apesar de caráter voluntário, o Governo determina por despacho o número máximo de unidades a abrir em cada ano..No final do ano passado, havia 528 USF e 376 centros de saúde, com as USF a estarem centradas em 140 concelhos, o que deixa 138 concelhos sem qualquer USF. A criação das USF tem caráter voluntário, dependendo da vontade dos profissionais de saúde em se organizarem em equipas para formar estas unidades, o que "pode estar na origem de uma distribuição desigual ao nível do país"..Enquanto nos tradicionais centros de saúde a proporção de pessoas com mais de 65 anos é de 23,7%, nas USF anda entre os 20,4% e os 21,5%. No rendimento da população, observam-se também diferenças: o rendimento médio é de 983 euros na população servida pelos centros de saúde, subindo para cerca de 1030 euros nas USF, o que se reflete em diferenças no poder de compra. A análise ao percurso educacional, mostra que nas zonas servidas por USF mais de 15% da população tem o ensino superior, no caso dos centros de saúde essa percentagem baixa para 12%..Inércia do sistema.O Relatório da Primavera 2019 também tem uma vertente de crítica política e aponta que o setor da saúde foi marcado nos últimos anos por uma inércia de governação, muito baseada em gestão corrente, perdendo-se meses em "retórica e taticismo" e deixando reformas por concretizar..O documento sublinha que "o SNS está bem melhor do que muitos pretendem fazer crer", mas refere que, em termos governativos, "pouco foi acrescentado à herança do Governo anterior". "À falta de dinheiro", a tática do atual executivo passou por fazer uma "gestão corrente do setor"..Na análise da governação na saúde, o Relatório da Primavera recorreu à opinião de três pessoas do setor, com posicionamentos ideológicos distintos: Cipriano Justo, Leal da Costa e Ana Jorge, explicou à agência Lusa o porta-voz da coordenação do documento, Rogério Gaspar..O documento sugere que o setor da saúde se encontraria hoje em "piores condições do que quando foi herdado do anterior Governo" caso não fossem as movimentações da sociedade civil e do setor, fora do Ministério da Saúde. A sustentação financeira do SNS no imediato acabou por dominar as preocupações e orientações políticas do atual Governo, "em detrimento da sustentabilidade técnica, estrutural, humana e financeira a longo prazo".."Quando o primeiro-ministro deu conta do que se estava a passar, tinham-se passado três anos e a equipa da saúde do seu Governo não mostrava capacidade de liderança para gerir a política de saúde", refere o médico e investigador Cipriano Justo no primeiro capítulo do relatório, aludindo à substituição do antigo ministro Adalberto Campos Fernandes por Marta Temido, que entrou para o Ministério em outubro do ano passado..Do tempo de Campos Fernandes ficou a decisão de nomear uma comissão para propor uma nova Lei de Bases da Saúde, mas "já no limite do admissível". "A um ano de eleições para o parlamento e com uma herança particularmente turbulenta, à nova equipa [do Ministério] faltava-lhe tempo para equacionar e acomodar as medidas que em devido tempo não tinham sido tomadas nem consideradas. Restava-lhe resolver os conflitos laborais e gerir politicamente a revisão da Leu de Bases da Saúde", afirma..A propósito de reformas por concretizar e nomeadamente sobre a Lei de Bases da Saúde, o documento indica que se perderam meses "a mais em tergiversações, retórica e taticismo".."Se a lição tiver sido suficientemente aprendida, o próximo ciclo governamental pode ser aproveitado para, de uma vez por todas, se procederem às mudanças que há anos batem à porta", indica Cipriano Justo..No mesmo capítulo sobre a governação do SNS, Leal da Costa, médico e antigo governante do anterior executivo PSD-CDS, refere que "o SNS está pior", porque a procura é "muito superior à sua capacidade de resposta", muito pelo impacto de uma população mais envelhecida..Contudo, Leal da Costa assume que o estado do SNS será "ainda bem melhor" do que muitos acreditam: "O estado do SNS, provavelmente ainda bem melhor do que nos querem fazer acreditar em cada momento, sejam as oposições -- em particular quando é de esquerda --, os meios de comunicação social ou as opiniões avulsas de casos isolados, mas seguramente pior do que os governos e governantes imaginam, precisa de cuidados contínuos e de aperfeiçoamentos constantes"..Também Ana Jorge, médica e antiga ministra de um governo socialista, assume que "o SNS está em forte crise", apontando os recursos humanos como o principal desafio.."Os profissionais de saúde têm de voltar a ter orgulho de trabalhar no SNS", refere a antiga ministra no Relatório da Primavera, manifestando preocupação com a desilusão que os profissionais sentem com o serviço público..Aliás, nas conclusões do Relatório destacam-se os profissionais como o desafio primordial do SNS, apontando para a necessidade de "remunerar a qualidade" e recompensar as boas práticas.