Uruguai prepara viragem à direita após 15 anos de presidentes de esquerda
A vitória de Daniel Martínez na primeira volta das presidenciais do Uruguai teve um sabor amargo. O candidato da Frente Ampla, a coligação de esquerda que está há 15 anos à frente dos destinos do país, conseguiu uma prestação abaixo do esperado e o principal adversário, Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional (ou Branco), teve um resultado que o catapultou para a necessária aliança que o coloca como favorito na segunda volta deste domingo.
Martínez conquistou 39,2 % dos votos, com Pou a conseguir 28,62%. Ernesto Talvi, do Partido Colorado (que antes da vitória da Frente Ampla em 2004 alternava no poder com o Partido Nacional), teve 12,34%. Os dois partidos conservadores uniram esforços para derrubar a Frente Ampla do presidente Tabaré Vázquez e do ex-presidente Pepe Mujica (que esteve no poder entre os dois mandatos de Vázquez). No Uruguai não é permitida a reeleição em mandatos consecutivos.
As últimas quatro sondagens feitas no Uruguai, divulgadas na quinta-feira, dão Pou como vencedor, com uma percentagem de votos entre os 49,9% e os 52%. Martínez tem entre 41% e 44,5%.
As eleições no Uruguai decorrem num clima de calma, numa altura que vários países da América do Sul estão a passar por graves crises políticas e sociais, como são os casos da Venezuela, o Chile e a Bolívia -- que já contam com dezenas de mortos nos últimos meses -- e por populismos, como no Brasil. O Uruguai tem mantido a estabilidade em todos os campos -- social, político e económico.
Luis Lacalle Pou, de 46 anos, vem de uma família tradicional na política uruguaia. É filho do antigo presidente Luis Alberto Lacalle Herrera, que dirigiu o Uruguai entre 1990 e 1995.
Advogado, foi deputado entre 2000 e 2015 e senador nos quatro anos seguintes, depois de ter perdido a segunda volta das presidenciais de 2014 para Vázquez.
O adversário, Daniel Martínez, de 62 anos, é engenheiro e sindicalista, sendo militante do Partido Socialista (um dos que compõem a aliança da Frente Ampla) desde os 16 anos. Foi ministro da Indústria, Energia e Minas no primeiro governo de Vázquez, senador e pediu licença do cargo de intendente (uma espécie de governador) de Montevidéu para se candidatar às presidenciais.
Sabendo que partia em desvantagem para a segunda volta, Martínez anunciou como trunfo que Mujica será um dos ministros do seu eventual governo.
O ex-líder guerrilheiro dos Tupamaros (que esteve detido 12 anos durante a ditadura militar) e ex-presidente de 84 anos liderou a lista da Frente Ampla para o Senado, tendo conseguido o maior número de votos nesta legislatura. Teria que renunciar ao cargo de senador se for eventualmente nomeado responsável pelo ministério da Pecuária, Agricultura e Pescas.
Vázquez interrompeu o domínio dos partidos conservadores com a sua vitória em 2004. Pepe Mujica sucedeu-lhe em 2009, pondo o país no mapa global por ter o "presidente mais pobre do mundo". Vázquez regressaria para o segundo mandato em 2014.
Foi no mandato de Mujica que, em 2013, o Uruguai legalizou a marijuana, incluindo o cultivo e a venda, numa medida cujo impacto ainda está a ser analisado. Os críticos dizem que foi responsável por um aumento da criminalidade -- desde 2005 os homicídios aumentaram 80% e as denúncias de furto 200%. Só no ano passado houve 414 homicídios, mais 45% que no ano anterior.
Foi ainda no mandato de Mujica que se despenalizou o aborto (2012) e que foi autorizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2013). Isto quatro anos depois da legalização das adoções por parte destes casais, ocorrida no primeiro mandato de Vázquez. Já no segundo, foram aprovadas leis para proteger os transgénero e reformas para garantir a igualdade de género.
Vázquez, um oncologista, liderou também logo desde a primeira hora a luta contra o tabaco, defendendo desde 2005 o aumento dos impostos e as restrições ao seu consumo em espaços públicos. O Uruguai tornou-se, em 2006, no quinto país do mundo a proibir fumar em espaços públicos fechados. As tabaqueiras responderam com processos judiciais, mas o Uruguai venceu após anos nos tribunais.
Por ironia, Vázquez anunciou em agosto que tem um cancro maligno no pulmão. Apesar de o pai, a mãe e a irmã terem morrido nos anos 1960 de cancro, os médicos acreditam que não será genético, mas fruto do fumo passivo, tendo o presidente deixado de fumar com 24 anos (tem hoje 79 anos).