Ups, esqueci-me do título...

Crenças populares em torno da memória levam-nos a recusar queijo à sobremesa, a atar lenços a cadeiras, a invejar elefantes e a rir a bandeiras despregadas com anedotas de velhinhas desmioladas.
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Há quem ate um fio no dedo, outros trocam a aliança de mão. Quando perdi a minha aliança e não consegui encontrar o lugar onde se guardam os cordéis lá em casa passei a lembrar-me de coisas absurdas do meu passado. É assim mesmo. Para escrever algo a respeito de crenças populares relativas à memória fiquei com pena de não poder entrevistar-me, eu, uma esquecida crónica com ataques ocasionais e severos, que se esquece onde pôs a guia da carta de condução, de que teve de pedir uma segunda via por não saber onde guardou o original.

A falta de memória para as coisas do quotidiano tem as suas explicações científicas e até espirituais, mas o modo como todos nós lidamos com isso cria um folclore engraçadíssimo.

Os elefantes têm memória? Mais do que isso, uma memória prodigiosa? Parece que sim, mas ao pesquisar sobre o tema, convicta de que iria encontrar referências a movimentos de matriarcas velhíssimas, que abandonavam a manada para se dirigirem a míticos cemitérios de elefantes cuja localização secreta atravessaria a memória de gerações, descobri que a coisa é isso mesmo, um mito de que guardei vaga lembrança, talvez de um filme do qual já não me lembro o nome.

«Aide-memoire»

Cientistas da Universidade de Sussex, na Inglaterra, citados em vários artigos da internet, pesquisaram a frase feita e descobriram que os elefantes têm, sim, uma grande habilidade para reconhecer sons característicos de outros membros da manada, mesmo que deles estejam separados há vários anos. Os cornacas - condutores indianos de elefantes (acho que me li pela primeira vez este nome nas histórias de Mogli, do Livro da Selva...) - exploram esta habilidade para ensinar aos seus paquidermes uma quantidade enorme de comandos vocais. E os bichos lembram-se de todos na hora certa.

Este é um caso em que a ciência foi atrás do dito e encontrou alguma correspondência com a realidade. Já a célebre frase acusando o queijo de fazer mal à memória é uma daquelas coisas que pura e simplesmente não se verifica.

Os portugueses, tidos como povo de fraca memória, são dos que menos comem queijo na Europa. Pedro Pimentel, presidente da Anil, a Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios, esclarece e cita de memória, pelo telefone, que cada português come, em média, 10,8 quilos de queijo por ano. A média europeia é de 23 quilos, logo não se percebe porque não nos lembramos, nós os portugueses, de tantas lições valiosas da História, e os abomináveis comedores de queijo franceses hão-de ser louvados porque até inventaram a expressão «aide-memoire».

Foi curiosamente um português o responsável por esta ideia que está bem arreigada no mundo da cristandade. O Padre Manuel Bernardes, que pertencia à Congregação do Oratório de São Filipe Neri, escreveu vários livros de grande valor espiritual e num deles, Nova Floresta, abordando formas de melhorar a memória refere, a páginas tantas: «Há também memória artificial, da qual uma parte consiste na abstinência de comeres nocivos a esta faculdade, como são lacticínios, carnes salgadas, frutos verdes e vinho, sem muita moderação, e também o demasiado uso do tabaco.»

Pronto, por um processo ínvio livrou-se o vinho e o tabaco do anátema, e passou a atribuir-se ao queijo efeitos nefastos sobre a memória, os suficientes para que fosse cunhada a frase condenatória ao desmemoriamento «Comes muito queijo».

Várias obras citadas pelo historiador Guilherme Santos Neves, que publicou em 1960 na Gazeta, de Vitória, um artigo com o justo título Memória e Queijo, e que hoje se pode consultar no sítio Jangada Brasil, na internet, vão dando explicações e exemplos do uso desta frase, incluindo na literatura, mas a utilização mais comum, que eu me lembre, era a da minha mãe quando eu me esquecia de fazer a cama.....

Rituais de «lembrança»

Todas as evidências posteriores contrariam esta relação espúria: o queijo é um alimento rico em cálcio e fósforo, os quais auxiliam muitas funções do cérebro, e eu mesma já passei longas temporadas sem me alambazar com lacticínios (ainda não havia hipermercados e esquecia-me com frequência das horas de fecho da mercearia do bairro) e não foi por isso que passei a ter melhor memória. De tal forma que, depois de uma época curta a usar a tal «aide-memoire» dos franceses, fazendo na mão uma pinta a esferográfica, para me lembrar de que precisava de me lembrar de algo importante, passei a ter de escrever à frente de uma cruz, pelo menos, a inicial da palavra que descreve aquilo de que não me posso esquecer. +A+M+A, por exemplo, quer dizer Aniversário da Mãe, Amanhã. Hum... ou será que é Apanhar Malas no Aeroporto?

Adiante: a abordagem popular à memória ou à falta dela gera rituais engraçados, como o de amarrar a perna ao diabo, algo que me lembro bem de ver as minhas tias fazerem lá em casa e que, por falar nisso, me aconchega na ideia de que o meu desmemoriamento pode ser hereditário. Amarrar a perna ao diabo é um mistério que parece funcionar e não há ciência que explique porquê. Consiste em pegar num fio, num lenço, num cinto ou algo parecido e enrolá-lo à volta da perna de uma cadeira ou de uma mesa, enquanto se recita o responso a Santo António (desta parte eu não me lembrava, vi na net): «Aqui te amarro, diabo / Aqui te amarro o teu rabo / À perna desta cadeira / Enquanto (nomeia-se o objecto perdido) não aparecer / Aqui hás-de padecer.» É atar, rezar e deixar que o absurdo faça o seu curso, porque é dado por garantido que o objecto perdido vai aparecer.

Mnemónicas

Foi também em contexto familiar que pela primeira vez aprendi o significado de mnemónica, aquela associação de ideias que, de uma mais confortável e menos propensa a esquecimentos, leva à outra que precisamos mesmo de não esquecer. A necessidade era grande porque sempre me foi difícil decorar fórmulas e, nas vésperas de mais um torturante exame de matemática, aprendi poeticamente o Teorema de Pitágoras com a minha mãe: «A caminho de Siracusa / Disse Pitágoras aos netos/ O quadrado da hipotenusa / É igual à soma do quadrado dos catetos.». Ainda hoje só sei o teorema se o recitar assim, mas não me recordo se no exame me lembrei de tirar os «aide-memoire» à mnemónica.

A parte mais divertida de escrever a respeito de crenças populares em torno da memória foi, porém, recordar o extenso anedotário que o tema criou. Cito a mais simpática e inteligente que me apareceu, numa pesquisa expurgada de referências sexuais que incluem cabecinha e outras partes pudendas.

Duas velhinhas bem velhinhas fazem a sua sessão de canasta semanal, quando uma pergunta à outra: - Por favor, não me interpretes mal, que somos amigas há muito tempo! Mas agora não me consigo me lembrar do teu nome, olha só a minha cabeça. Como é que te chamas, querida? A outra olha fixamente para a amiga, uns bons dois minutos, coça a testa e diz: - E tu precisas dessa informação para quando?

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