Umberto Eco fecha o livro
Da janela do apartamento de Umberto Eco vê-se bem um dos principais monumentos de Milão, o Castelo Sforzesco. Coincidentemente, será nessa fortificação onde até terça-feira o seu corpo estará a ser velado, após o anúncio da sua morte que esta sexta-feira surpreendeu milhões de leitores em todo o mundo. Talvez por se confrontar com o Castelo Sforzesco em cada amanhecer milanês, Eco utilizara as suas catacumbas como elemento de inspiração no mais recente romance, Número Zero, para situar alguns dos factos inexistentes que apimentam a narrativa sobre um falso jornal. O escritor gostava de sobremaneira criar essas mentiras, tanto como apreciava mostrar os exemplares de livros falsos que tinha na sua biblioteca de 30 mil volumes nesse apartamento e mais 20 mil na casa de praia, em Rimini.
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Falsidades que estavam também em O Pêndulo de Foucault, romance que lhe levou oito anos a escrever e que, não tendo o sucesso esperado, o deixou algo triste. Aliás, a intriga de O Pêndulo passava por Portugal, mais precisamente pelo Convento de Cristo, em Tomar, aonde o escritor se deslocou no período de investigação do romance, deixando o monumento com "a mente em chamas" face ao que observara.
A diretora do Convento, Andreia Galvão, recordou isso mesmo ontem, tal como o facto de ele ter posto num dos personagens que andava ao engano sobre os mistérios dos Templários toda a emoção vivida em Tomar: "Comovera-se ao entrar na Charola, o templo octogonal que reproduz o do Santo Sepulcro." Ora se Umberto Eco levou com este romance, como assinala a câmara de Tomar, o nome da cidade a "milhões de leitores por todo o mundo", também não deixou de colocar em causa o que era verdade e o que se tornava mito ao longo dos séculos na Ordem dos Cavaleiros Templários. Tal como o fizera no penúltimo romance, o Cemitério de Praga, ao deixar o protagonista proferir um longo rol de falsidades históricas, daquelas que deixava o leitor em dúvida sobre o que seria afinal verdade ou mentira.
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E aqui chegamos a muito do que marca todo o trabalho ensaístico e literário do filósofo e romancista ateu, o de estar sempre apostado em criar uma dúvida em quem o lia ou ouvia. Uma pose de intelectual que se tornou conhecida em todo o mundo e que o pensador português, Eduardo Lourenço, define como sendo um "caso extraordinário e dos mais representativos de quem fez da cultura a máxima das ficções".
Se bem que na última entrevista que deu ao DN, em 2015, Umberto Eco estivesse pouco satisfeito com o impacto futuro de alguns dos grandes temas que dominaram os anos 60, 70 e 80, e que nortearam muitos dos seus trabalhos, considerando que era temas "muito mal compreendidos", como era o da Guerrilha Semiológica: "Na discussão sobre a comunicação dos anos 60 pensava-se sempre em como passar a mensagem. A solução era mudar a mentalidade face à influência da televisão e era preciso que em frente a cada aparelho estivesse alguém que explicasse. Isso era a Guerrilha Semiológica, que provocou até conflitos com os militares."Entre as situações mais polémicas estava o modo como abordava as questões, tanto assim que chegou a escrever um ensaio sobre James Bond. "Um tema de comunicação de massas...", disse ao DN. Que os seus colegas académicos não apreciaram, questiona-se: "Naquela época, nos anos 60/70, não apreciaram assim tanto, mas depois recebi 42 doutoramentos honoris causa, o que quer dizer que os meus colegas não percebiam a realidade."
Eco nunca se preocupou com a opinião pública sobre a sua rebeldia e quando passeava pelas ruas de Milão gostava de ser reconhecido ou até ser questionado sobre a sua obra, mesmo que após O Nome da Rosa os temas se focassem mais nesse livro e menos na semiótica ou outros termos impenetráveis para o cidadão comum. Era aqui que residia a diferença de Umberto Eco para com os seus contemporâneos, pois utilizava o que as pessoas percebiam como material ensaístico. Em nome da semiótica surgiam nos livros símbolos, conceitos, palavras, desenhos, bem como a religião, a moda, ou até a música, que as pessoas conheciam. Nada que fosse apenas matéria-prima para ensaio, mas também para os romances que escreveu e onde decalcava muitas preocupações - e provocações - académicas.