Umas cuecas para Carmen
Se a polícia permitisse..." é uma frase quase enternecedora que se lê numa carta de Verdi em que o compositor sugeria uma ideia ainda vaga de Rigoletto ao seu libretista. A polícia permitiu e a ópera, como se sabe, termina com a protagonista assassinada, enfiada num saco e entregue ao pai. Os finais trágicos e violentos, que na ópera hoje parecem quase óbvios, foram uma lenta conquista dos músicos ao longo do século XIX. Príncipes, padres, polícias e empresários não os queriam e não permitiam.
Mais recentemente, deu que falar uma Carmen de Bizet em Florença. O encenador, Leo Muscato, resolveu alterar o final: a mulher mata o homem ciumento, e não o contrário. A notícia veio na sequência de muitas outras: pintores acusados de instigar à pedofilia, realizadores boicotados enquanto imorais Houve até um exegeta que leu os inéditos de Woody Allen como provas da perversão do autor. A sentença foi retuitada em segunda instância.
No meio disto tudo, a ideia de ajeitar o final de um espetáculo nem é das mais perigosas. Uma encenação extravagante não é uma fogueira de quadros, insere-se numa fase histórica em que o teatro de ópera é caracterizado pelo vedetismo do encenador. Só que a mensagem teve o aval da política (enquanto, curiosamente, o encenador ainda não introduziu nenhuma referência a esta Carmen no seu website) quando o presidente da Câmara de Florença e da fundação que administra o teatro disse ser justo alterar um final em protesto contra a violência de género.
O debate acerca da violência contra as mulheres, em Itália e não só, é muito aceso e alimentado diariamente por notícias que abalam a opinião pública. Há até uma palavra nova, feminicídio, que, apresentando-se como a versão feminina de homicídio, soa fatalmente a genocídio. Por isso, sobre qualquer discurso que procure acalmar os exaltados paira a acusação de negacionismo: quem não está com as mulheres está contra elas e nega o extermínio em curso. Mas a Carmen alterada e a política que define o que é justo e injusto encenar diz-nos que a censura é perigosa precisamente porque tem um montão de boas razões.
O motivo que levou os censores a censurar foi sempre o bem superior da coletividade contra a depravação de alguns excêntricos. Quando pensamos no pudor vitoriano ou na honra antiquada das personagens oitocentistas, ameaçada por um adultério ou outro amor indecente, achamos que tudo isso, nas nossas sociedades avançadas, ficou para trás. E eis que damos por nós a emendar textos que até passaram o crivo da polícia da época. Boas razões há sempre.
Esta censura moderna, democrática no sentido etimológico da palavra, já que não é imposta, mas surge do "povo" (social networks, lobbies, vips), ainda não explicou por que razão o século que viu mais reis e pais tiranos oprimirem filhos, regularmente sacrificados em palco, foi também a época em que os monarcas perderam poder para os parlamentos e a família burguesa começou a aproximar-se daquilo que hoje consideramos um modelo aceitável de convivência.
Quem pode dizer qual é o percurso de uma obra de arte na mente do espectador e nas malhas da sociedade? Alex, o delinquente da Laranja Mecânica, na biblioteca da prisão onde está detido, lê o Evangelho e identifica-se com o centurião que chicoteia Jesus. Isto remete-nos para o famoso debate que envolveu gerações de pais preocupados com a violência nos contos de fadas. A psicanálise explicou a sua utilidade, mas continuam a circular histórias de lobos mansos e caçadores multados. São versões que a liberdade torna possíveis, na esperança de que não se tornem normais.
O próprio Muscato poderá prosseguir com os seus exercícios de alteração de finais famosos. Deixaria uma marca de autor em série capaz de garantir a dose certa de escândalo e consenso, a meio caminho entre um dadá pintando bigodes na Mona Lisa e Daniele da Volterra, convocado pelo Papa para tapar as "vergonhas" que Miguel Ângelo deixara à mostra na Capela Sistina. Ótimo pintor, ficou-lhe no entanto a alcunha de Braghettone, ou seja, "o tal das cuecas".
Marcelo Sacco é um jornalista italiano freelancer