Uma visão de Portugal do catalão Gaziel

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O escritor catalão Gaziel, pseudónimo de Agustí Calvet (1887-1964), publicou Portugal enfora, em 1953. Gaziel já tinha visitado muitas vezes Portugal, conhecia muito bem sua história, suas terras do norte ao sul, e do leste ao poente. Gaziel foi, junto de Josep Pla, um dos grandes prosadores catalães do passado século.

A tese principal do seu livro é a tensão histórica entre o centro e a periferia da península, a dominação duma Castela pobre sobre a periferia mais rica, o que era uma necessidade de sobrevivência pois a periferia da Península é a mais dinâmica, a mais rica. "Sem a periferia, Castela seria perdida, condenada à pobreza e ao isolamento", escreve.

"Como foi possível, no entanto, - pergunta-se - que a cintura peninsular, a parte mais rica, verde e povoada, tenha necessitado de ser conformada e unida pela parte mais pobre e triste, que é a áspera terra do interior?, "As empresas principais dos povos da periferia em relação à Península, foram sempre centrífugas, porque as realidades e as miragens que os mares imensos lhes punham à frente eram (ou pareciam) incomparavelmente superiores a todas as terras que tinham atrás".

Fala das efemérides luso-catalãs e do seu sabor agridoce, "a agonia de Catalunha e a Renascença de Portugal foram simultâneas e sincrónicas". Mas não se engane o leitor, Gaziel era um grande catalanista mas não um separatista. Hoje não se reconheceria nos políticos da ERC ou do Junts, pois Gaziel tinha outro nível cultural, muito mais elevado, e uma grande sabedoria histórica. Não pode ser recuperado e de facto, não o é, pelos atuais independentistas.

O seu livro é, mais do que uma reportagem, uma reflexão cultural e histórica que nessa altura não foi, naturalmente, bem recebida nos círculos oficiais de Madrid. Aliás, não há tradução disponível em castelhano. Gaziel era conservador e não foi incomodado de mais pelo regime franquista mesmo se o preço foi ficar praticamente desconhecido fora da sua terra e limitadas as suas publicações ao estreito círculo da intelectualidade catalã.

Além deste livro sobre Portugal também escreveu outro na sua Trilogia Ibérica, sobre Castela, Castella endins (Por Castela adentro) e umas memórias interessantíssimas, Tots els camins duen a Roma (Todos os caminhos vão dar a Roma). Foi correspondente na Primeira Guerra Mundial. Definia-se racionalista, liberal, tolerante. Fugiu da zona republicana durante a guerra civil, temendo pela sua vida, sem no entanto se aproximar dos franquistas. Pertenceu a essa terceira Espanha, que ficou horrorizada dos excessos das retaguardas dos dois lados, dedicadas a represaliar e não a lutar nas frentes.

Gaziel admirava muitas coisas de Portugal, da cidade de Lisboa, "uma capital natural", diz, contrariamente a Madrid - que ele considera capital artificial, obra de Felipe II -, a travessia do Tejo em ferryboat antes de existir a ponte, as belas estradas - ainda hoje as velhas estradas, com ciprestes e árvores, são muito mais bonitas do que as autoestradas, como é a estrada que liga Montemor-o-Novo a Elvas, a N 4, ou a de Beja a Serpa -, as suas bombas de gasolina, os pinhais imensos, os cinemas magníficos de Lisboa (Eden, São Jorge, Monumental), gostou do cosmopolitismo das classes burguesas de Portugal, que falam outras línguas, que têm cultura francesa e inglesa. Isto o vejo ainda ao falar com os meus amigos portugueses e ao ver o grande número de livros em francês e inglês que posso encontrar nos alfarrabistas, testemunhas duma elite burguesa culta e europeia.

Gaziel gostava de viajar de comboio e é curioso que são os caminhos de ferro entre Espanha e Portugal os que recebem mais críticas, irónicas mesmo, dedicadas à já então vetusta e má linha Lisboa-Madrid. Como foi suprimida há dois anos, com o pretexto da covid e já nem sequer temos comboio, nem teremos num futuro próximo, imagino que os administradores da Renfe e da CP vão rir com indiferença dessas críticas de Gaziel.

Amou o feitiço de Coimbra, a elegância do Chiado (mas não do monumento de Camões, que acha feio, como o de Eça na rua do Alecrim, gostou da tranquilidade de Setúbal -"uma cidade com aspeto totalmente levantino, vila mediterrânea, com luz dourada" -; nas suas viagens encontrou-se com muitos amigos portugueses para conversar de cultura e de história. De certo modo, na sua descrição de viajante iluminado - não de turista - Gaziel traz-nos um Portugal e sobretudo uma Lisboa que quase não existe mais, com o turismo massificado de hoje e a Baixa convertida num parque temático onde é já difícil encontrar lisboetas.

Sobre o "feitiço" de Coimbra, quero acrescentar que Gaziel resumiu nesta palavra, hechizo - encís em catalão - algo que sentimos muitos dos que amamos Portugal. É um país com feitiço, um país duma história por vezes misteriosa (a escola de Sagres, os descobridores e navegantes, o sebastianismo, o criptojudaísmo), diferente, com uma arte singela (o manuelino, os painéis de São Vicente, os jardins secretos, Pessoa e a sua obra com tantos significados, os lugares míticos como o cabo da Roca e o cabo Espichel, etc).

Gaziel não teve as "costas voltadas" - que para mim são mais um mito do que uma realidade, mais político que real. Nunca os dois países estiveram totalmente afastados, e os espanhóis sempre gostaram dos portugueses e deste país, mesmo com a ignorância da sua história, que não estudávamos na escola, como também não estudamos a da França ou a da Inglaterra. Há uns dias falava com um amigo português no clássico restaurante Colina, da ignorância dos espanhóis sobre a história de Portugal e a sua dificuldade (ou falta de vontade) de falar o português, o que é assimétrico pois os portugueses conhecem muito bem Espanha, e quase todos os portugueses falam mais ou menos o espanhol. Como desculpa, disse-lhe, também em Madrid desconhecemos os escritores catalães, assim, só uns poucos conhecem Gaziel e os grandes clássicos catalães como Narcís Oller ou o estimado poeta Miquel Martí i Pol, entre muitos outros, por exemplo.

Seria bem-vindo, no entanto, que alguma editora portuguesa tivesse a iniciativa de publicar este ameno, documentado e magnificamente escrito livro de Gaziel porque é um exemplo de como viajar, entender e descrever um país além da superficialidade e dos tópicos, um Portugal que já mudou muito, mas onde ele encontrou, e sublinhou, rasgos imperecíveis.

Escritor espanhol residente em Portugal

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