Uma viagem de 28 anos, da loja do Interior à liderança de um gigante
Encontramo-nos no café Único, no CCB, após o que diz ter sido "um dia de sorna total". Pedro Cid licenciou-se em Castelo Branco e nestes 25 anos não falha o jantar anual de caras de bacalhau com os amigos que ficaram desses tempos. O feriado deu o mote ideal para o encontro, mas obrigou-o por um dia a quebrar os hábitos de se deitar "com as galinhas". A receita para o dia lhe correr bem passa por levantar-se cedo, ler os jornais e pôr a veia alentejana a trabalhar. Na verdade, Pedro Cid nasceu na Chamusca, mas foi em Elvas que cresceu e sente-se por isso alentejano - um amante do campo, que foi forçado a abandonar para atinar. "Eu era um índio... A minha mãe sofreu horrores comigo", ri-se, a recordar os tempos em que foi retirado ao seu meio e encaminhado para um internato na Escola Agrícola da Paiã, onde cumpriu o liceu. "Adorei esse tempo, foi das coisas mais giras que vivi", recorda. Foi também por insistência da mãe que seguiu para a faculdade, instalando-se em Castelo Branco numa casa repartida com três companheiros do internato que se mantêm no seu núcleo desde os tempos em que se dividiam nas funções de limpeza e arrumação - e se subornavam mutuamente para lhes escapar de quando em quando. "Foi um período muito giro e esta relação dura até hoje."
Sendo ele nascido a meio de um rol de sete irmãos, uns de mãe, outros de pai, outros ainda comuns a ambos, já estava habituado e continua a gostar da confusão, mesmo que já só consiga juntar-se a família toda nas festas de Elvas, em setembro. E passou esse gosto pela casa cheia e pelo convívio à filha, Madalena, de 17 anos, a quem faz questão colar os adjetivos mais amorosos e descreve como excelente aluna. É um pai babado e não o esconde, como não tenta disfarçar que a maçã não caiu assim tão perto da árvore.
"Eu continuei a estudar por insistência da minha mãe. Ela fazia questão de duas coisas: que eu aprendesse inglês e que continuasse os estudos em vez de dar seguimento à vida dela e do meu padrasto (ele tomava conta de herdades, ela trabalhava numa empresa de sementes). E ainda bem, porque sou muito feliz, tenho uma vida boa." Há de repeti-lo muitas vezes durante a nossa conversa, enquanto me conta como passou do primeiro emprego da sua vida, numa loja Jumbo de Castelo Branco, a CEO da Auchan em Portugal.
Tinha acabado o curso e queria ficar por Castelo Branco, onde tinha arranjado namorada e viria a fazer o primeiro casamento. Viu o anúncio nos classificados do jornal e concorreu a um lugar num supermercado. Não passou o crivo do primeiro entrevistador - que ainda hoje trabalha com ele na Auchan -, mas convenceu o segundo e lá se foi ambientando à secção de drogaria e perfumaria.
Com um extenso brunch a chegar-nos à mesa, com doces, queijo, pão fresco e café, explica-me que ao fim de seis meses estava com vontade de se vir embora. A mudança do campo para a cidade, da liberdade para o fato e gravata quando nem os nós sabia fazer (fazia-lhos a ex-sogra, durante muito tempo), não era fácil. E piorava pelo facto de as suas funções se resumirem a pensos higiénicos, batons, vernizes. Recorda-se até hoje da reunião de lançamento do Evax, Fina e Segura, de estar numa sala de reuniões com duas senhoras e os responsáveis pelo produto cortarem um penso a meio depois de lhe despejar água em cima, para eles verem como funcionava. "Eu era uma criança... comecei a rir e não consegui voltar mais à sala."
A verdade é que foi precisamente a impossibilidade de ter dois dias iguais na complexa vitalidade e hierarquia de um hipermercado e de ter de lidar com o que nunca pensara que acabou por o agarrar ao negócio dos supermercados.
"Um híper tem 500 a 600 pessoas, incluindo vários níveis de chefias, desde os responsáveis dessas pequenas áreas, aos gerentes dos universos, depois os diretores de loja... Porque as áreas são todas muito diferentes, o que é preciso fazer, acautelar, considerar, resolver." Por outro lado, cada responsável de área tem uma equipa e a sua autonomia própria - negoceia com fornecedores, decide que produtos pôr à venda, quais levar ao folheto, "é como gerir uma pequena loja, que exige um trabalho de segunda a domingo, num mercado extremamente competitivo".
Da drogaria, Pedro passou para o alimentar, chegou a gerente e passado três anos o seu antecessor saiu para abrir um Jumbo em Aveiro e chamou-o. A resposta positiva acabaria com o primeiro casamento, mas estreou-o num percurso ascendente, graças à sua capacidade de resolver desafios permanentes - dos mais simples, como a cliente que por três vezes foi à mesma loja devolver frangos comprados na véspera, o último dos quais com menos meio quilo do que saíra do super ("era só a pele e os ossos", ri-se); aos mais complexos, como a integração de funcionários cuja sexualidade não é facilmente aceite pelos demais ou a capacidade de entender as fragilidades e impossibilidades pessoais dos funcionários, obrigando muitas vezes à criação de estratégias de sensibilização dos colegas.
Pedro foi fazendo de tudo e alimentando uma paixão já irremediável pela sua profissão e as coisas foram acontecendo. De Aveiro, onde conheceu Marta, a sua mulher - por quem é também apaixonado -, foi para diretor de loja na Figueira da Foz (2003), abriu a de Coimbra, a da Amadora (2009), depois Sintra.
"Não sou especialista em nada, faço de tudo e não tenho dificuldade nenhuma em trabalhar. Nem parece que passaram quase 30 anos desde que entrei na Auchan", diz, mais para si próprio, enquanto recorda as diferenças. Entre os funcionários orgulhosos e briosos que faziam lojas como a de Castelo Branco e a maioria dos jovens conimbricenses que trabalhavam na da sua cidade, apenas um par de horas por dia, para arranjar dinheiro para os copos. Entre o ambiente familiar de umas, em que todos se conheciam e se sucediam gerações, e até com os clientes havia uma relação de proximidade ("quando Cascais reabriu, muitos vieram fazer uma festa, abraçar os trabalhadores do Jumbo", conta); e as maiores dificuldades em bairros mais duros, requerendo especial atenção à integração "com humanidade" e resposta às questões sociais mais delicadas.
Reconhece que a vontade de conseguir encontrar equilíbrios para as pessoas é um desígnio que abraçou há muito e talvez tenha sido essa vocação que lhe abriu caminhos. "Sempre estive disponível para ir para onde fosse, mas nunca pensei, nunca sonhei nem nunca pedi para ter a função que tenho hoje. Nem me movia por isso. As coisas simplesmente foram acontecendo."
Se a decisão de aceitar vir para Lisboa foi ponderada - havia questões familiares que o encaminhavam mais para o Porto, mas acabou por ceder -, ao convite para CEO disse mesmo que não. Disse não assim, de caras, ao responsável internacional do grupo francês - que depois o obrigou a reconsiderar.
"Eu tive sempre uma relação ótima com o antigo CEO e com o presidente e sinceramente acho que vivo bem demais para o que se vive hoje", diz, antes de contar esse momento que até lhe tirou o sono. Tinha sido nomeado diretor-regional e por isso integrava o comité de direção, pelo que não estranhou quando o então CEO (hoje em Espanha) o chamou bem cedo numa manhã, nem sequer quando ele o encaminhou para a sala do lado, onde o aguardava Patrick Mulliez, responsável executivo do grupo familiar. "Achei que me queriam pôr numa posição fora de Portugal e confesso que não me apetecia nada... a minha filha tinha 12 anos, a Marta estava cá, os pais estavam velhotes; mas ele começou a falar em espanhol - normalmente falamos em francês - e convidou-me para CEO de Portugal. E eu disse que não. E insisti ainda duas ou três vezes antes de dizer que tinha de pensar."
O filho do fundador, Gérard Mulliez - hoje com 91 anos mas nem por isso menos próximo do negócio e da família alargada que considera todos os que com ele trabalham - lembrara-lhe que o comboio não passa duas vezes na mesma estação e que queriam muito confiar-lhe aquele lugar. "Eu não sou ansioso, mas fiquei com o coração acelerado e tive de pensar três dias. Nem contei à minha mulher até amadurecer a ideia e finalmente aceitar o cargo." Mas sem grande convicção, julgando que isso poderia afastá-lo do ambiente de loja, que se imprimira nas suas veias.
Nas novas funções há seis anos, Pedro Cid confessa que hoje adora o que faz. E explica porquê: "A Auchan é uma empresa francesa e nem um dos 9 mil trabalhadores que tem em Portugal é francês. Temos uma autonomia enorme, dentro dos valores familiares que regem o grupo. Dão-me total liberdade. É interessante poder construir um projeto em que tem as bases da família, o ADN, o suporte, mas que podemos adaptar a nós - há muitas coisas que fazemos aqui que não se faz noutros países." E para exemplificar, parodia: "Se eu mudasse a cor da loja, provavelmente nem diziam nada." Justifica que tem que ver com uma forma de estar que se enraíza no espírito de cada funcionário e com a responsabilização da equipa, à qual são sempre passados "os valores do senhor Mulliez: confiança, partilha e progresso". Traduz a máxima: "Confiança nas pessoas, que a empresa mostra todos os dias; partilha porque existimos desde 1970 e somos das poucas empresas não cotadas em bolsa, em que os acionistas somos nós, os colaboradores, e a partilha de resultados faz-se a esse nível. E progresso porque queremos sempre melhorar, temos brio."
Quando lhe pergunto pelo futuro, Pedro é rápido a dizer que espera nunca deixar de trabalhar - "é uma coisa que me aflige; adoro o que faço e sinto-me bem". Reconhece que dificilmente sairia da Auchan - certamente nunca para outra empresa da área, ainda que as elogie - e acredita que haverá novos desafios no seu caminho, mas não os ambiciona. Se o convidarem para um cargo melhor? "Provavelmente vou responder o mesmo, digo que não. Vivo no meu país, falo a minha língua, tenho o meu projeto e equipa; tenho muito que fazer aqui", concretiza.
Num futuro mais distante, porque adora cozinhar, talvez admita ter algo que o ligue à comida, mas também mantendo esse laço entre empresas e comunidade de que aprendeu a gostar tanto na Auchan. "Gosto e acho que faz sentido, ter qualquer coisa minha, que me obrigue a levantar-me e ter o que fazer (detesto aquelas férias em que não se faz nada", garante, enquanto legenda os seus 15 dias de férias anuais nos Salgados, no Algarve, com uma lista de rotinas que o tiram da cama quase ao nascer do sol. Depois regressa ao que mais gosta, o que faz no resto do ano, para explicar que nunca defendeu que se pague por antiguidade ou tempo trabalhado, mas pelo resultado diferenciado conseguido. "Quando o acionariado foi criado, o objetivo do grupo não era só distribuir os lucros, era ajudar as pessoas a fazerem um pé de meia para o futuro. Se todos os anos tivessem um vencimento adicional, na reforma tinham 30 ou 40 extra e isso é parte do sonho do senhor Mulliez, encontrar o equilíbrio entre a parte empresarial e a parte social. Eu não tenho ambição nenhuma de aumentar os rácios da empresa, tenho é de garantir a sua solidez. Tudo o que temos a mais, distribuímos."
Numa atualidade em que se vive pior, com dificuldades crescentes, o sonho de Pedro Cid passa por aí, por conseguir dar mais a quem merece, por garantir princípios atrativos para os jovens que começam no grupo, para que ali vejam a hipótese de uma carreira, como ele teve. E de sensibilizar cada vez mais os seus para a necessidade de acabar com o"crime do desperdício alimentar". Para ele, pede pouco. "Não luto um segundo por mais um euro. Quero é viver e continuar a ser feliz."