Uma UE dividida aprende a soletrar remunicipalização

Na Europa há várias cidades a resgatar serviços de água que haviam anteriormente concessionado a privados
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Não há um cenário linear no sector de água e saneamento ao nível da União Europeia (UE). Em alguns casos - como em Inglaterra - é tudo privado. Noutros - como na Alemanha - é predominantemente público. A palavra da moda é remunicipalização: o regresso à gestão municipal de estruturas que estavam concessionadas a privados (o caso mais emblemático foi em Paris). E uma recente iniciativa de cidadania europeia promete dar que falar: quase dois milhões de pessoas exigem que se consagre na legislação comunitária o direito à água e ao saneamento.

A petição, a primeira iniciativa do género, foi lançada em 2012 pela Federação Europeia de Sindicatos dos Serviços Públicos, para levar o assunto a discussão no Parlamento Europeu. Com 1 884 790 assinaturas, quase duplicou os mínimos exigidos (um milhão, em sete países). E já levou o comissário europeu para o Mercado Interno, Michel Barnier, a pôr travão na hipótese de criação de uma diretiva para a liberalização do sector da água.

"A mobilização dos cidadãos surtiu efeito, mas tem de continuar", afirma Jorge Fael, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local, que integra a iniciativa. A proposta "Água é um direito humano" será discutida no Parlamento Europeu "em janeiro ou fevereiro de 2014", estima o sindicalista. E os objetivos são claros: "Consagrar o direito à água e ao saneamento na legislação europeia, garantir estes serviços a todas as populações e exigir que a Comissão Europeia se abstenha de tomar medidas de liberalização e comercialização destes bens."

De Portugal chegaram cerca de 16 mil assinaturas - perto do dobro das recolhidas no Reino Unido, mas uma migalha comparada com os quase 1,4 milhões de pessoas que subscreveram a iniciativa na Alemanha. Também aí se vê a divisão dos países da UE quanto ao tema (ver textos em baixo).

Alemanha

Por princípio contra a privatização do sector

Na Alemanha, a gestão de água e saneamento está, na grande maioria dos casos, na mão de municípios ou associações intermunicipais. Só as águas da capital, Berlim, foram privatizadas, em 1999 - em 49,9%, num processo pouco claro que garantia grandes lucros à Veolia e à RWE. Mas numa década, perante a crítica generalizada da população, o serviço logo foi remunicipalizado.

De resto, o "não" à liberalização deste sector parece enraizado tanto na população germânica - a grande contribuidora para a petição europeia - como no meio político: um dos acordos de base da grande coligação CDU-SPD, que permitiu a formação do novo Governo de Angela Merkel, foi o declinar de qualquer hipótese de privatização.

Espanha

Um país cada vez mais aberto a privados

O país vizinho tem o mercado liberalizado desde os anos 80 e cerca de 50% na mão de privados. O grupo Agbar (Aguas de Barcelona), detido maioritariamente pela francesa Suez, é o principal player de uma nação cada vez mais aberta à iniciativa privada no sector.

Tal como outros países com dificuldades financeiras (como a Grécia), Espanha tem avançado com mais concessões e privatizações nos últimos anos. Porém, alguns casos, como a privatização da Canal Isabel II (empresa pública que gere as águas da Comunidade de Madrid), causaram grande celeuma. E a oposição pública - expressa em referendo - já levou ao desacelerar do processo.

França

Entre os "tubarões" e as remunicipalizações

França tanto é casa dos maiores "tubarões" da água e saneamento (alguns dos maiores grupos económicos do sector, como SAUR, Suez , Veolia e GdF são lá sedeados) como tem sido berço de muitos processos de remunicipalização nos últimos anos.

Aliás, o mercado gaulês - que até há pouco tinha 75% da água e 50% do saneamento concessionados a privados e o resto na mão de organismos públicos - está em mutação. As grandes empresas foram parcialmente nacionalizadas nos últimos anos, devido a dificuldades financeiras. E têm-se sucedido as remunicipalizações - até 2012, fizeram-no 40 municípios, incluindo a capital, Paris, e outras grandes cidades como Bordéus e Brest.

Muitos contratos de concessão vão expirar até 2020. E, com muitas autarquias insatisfeitas com os aumentos de preços e a degradação dos serviços, é possível que o "palavrão" remunicipalização continue na moda...

Holanda

Um sistema público e eficiente mas deficitário

O "país das tulipas" é outro exemplo de um sistema marcadamente público. Lá, os serviços de água e saneamento são sempre prestados por entidades públicas, que controlam produção, distribuição e tratamento de águas residuais. O sistema é bastante eficiente - as perdas de água na rede são inferiores a 10% -, mas revela-se deficitário (porque os ganhos não chegam para recuperar os valores investidos).

Itália

Larga maioria contra privados ou preços altos

O regime é público e o povo italiano também é contra a ideia de privatização das águas - e mostrou-o claramente num referendo sobre o assunto, em junho de 2011.

Então, votaram 27,6 milhões de italianos - 56% dos eleitores, no primeiro plebiscito do género considerado válido, em 16 anos - e 95,7% foram contra a aceleração da privatização do sector. A uma segunda pergunta, que propunha a revogação da lei que prevê que as tarifas dos serviços de água sejam determinadas em função do capital investido (provocando o aumento dos preços), o "sim" ainda recebeu mais votos: 96,1%.

Reino Unido

Privatização completa foi herança de Thatcher

Em Inglaterra e no País de Gales, o serviço de abastecimento de água e saneamento está completamente na mão de privados desde 1989. Então, a primeira-ministra, Margaret Thatcher, vendeu tudo, até infraestruturas, para não gastar na construção e recuperação de condutas e estações de tratamento.

Porém, desde então, os preços pagos pelos consumidores subiram mais de 50%. Nas outras nações do Reino Unido (Escócia e Irlanda do Norte) isso não aconteceu devido à resistência nos dois locais. Aí, os serviços continuam nas mãos das empresas públicas Scottish Water e Northern Ireland Water.

Outros países da união europeia

Mutações constantes, principalmente a leste

O sector de águas e saneamento também continua em mutação nos restantes países da UE - principalmente na frente leste. Na Bulgária estão a avançar várias privatizações. Na Hungria, opta-se pelo caminho inverso, com remunicipalizações dos serviços em Kaposvar, Pecs e Budapeste. E a Lituânia decidiu recentemente que só empresas municipais podem assumir estes serviços.

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