Uma tatuagem para os vivos

""Isto significa "ninguém, disse Andreas ao primo, que tinha visto a nova tatuagem. Os seus olhos estavam brilhantes e cheios de vida. Eu já conhecia a história - era a parte favorita de Andreas de Odisseia - mas fiquei a ouvi-lo na mesma."
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Andreas, o meu namorado, estendeu o antebraço sobre o prato de peru e inhame meio comido, de punho cerrado, expondo as letras gregas tatuadas em tinta azul-escuro que iam da dobra do braço até ao pulso. Eu comi hesitantemente uma garfada da salada, ainda nauseada da viagem de carro de cinco horas de Manhattan até Lexington, Massachusetts, onde os tios de Andreas recebiam a família para o jantar de Ação de Graças.

"Isto significa "ninguém"", disse Andreas ao primo, que tinha visto a nova tatuagem. Os seus olhos estavam brilhantes e cheios de vida.

Eu já conhecia a história - era a parte favorita de Andreas de Odisseia - mas fiquei a ouvi-lo na mesma enquanto contava a história de quando Ulisses e os seus homens se encontram presos na caverna de Polifemo, um temido ciclope.

A história conta que, numa ousada tentativa de se libertar, Ulisses diz ao monstro que o seu nome é Ninguém e de seguida espeta uma estaca de madeira no único olho de Polifemo, cegando-o. Os outros gigantes da ilha acodem a correr ao som dos gritos de Polifemo, mas logo voltam para trás quando o ciclope exclama que "ninguém" o tinha ferido.

Andreas sorriu. "Estás a ver?", perguntou. "Ulisses enganou-os. Ele escapou."

Menos de uma semana depois, eu estava sentada com os pais de Andreas no seu apartamento, em Tribeca, a olhar para uma fotografia da mesma tatuagem no meu telefone. Estávamos a beber vinho, embora fosse meio da tarde. Nessa altura, Andreas estava desaparecido há mais de 48 horas.

Tinha um e-mail em branco, endereçado ao detetive designado para o caso de Andreas, aberto à minha frente. O detetive tinha-nos pedido para lhe enviar uma descrição física detalhada de Andreas, incluindo fotografias das suas tatuagens. O objetivo era ajudar a polícia a elaborar o cartaz de pessoa desaparecida ou, se fosse caso disso, a identificar o corpo.

Eu tinha-me praticamente mudado para a casa da família de Andreas desde que encontrei o bilhete de suicídio na cama dele dois dias antes, juntamente com o seu cartão de débito, a chave da caixa do correio e um cheque para pagar a renda do mês. O seu telefone foi encontrado, mais tarde, naquela noite, na sala de estar com a sua última mensagem de texto enviada para mim pouco antes de deixar o apartamento pela última vez: "Adeus. Tu és mais forte do que pensas. Amo-te."

Estas palavras dançavam furiosamente na minha cabeça enquanto estava sentada no banco de trás de um táxi dirigindo-me para norte na Avenida Franklin D. Roosevelt, atendendo chamadas de agentes do 112 e da polícia marítima. Respondi às mesmas perguntas vezes sem conta: "1,86 metros. Branco. Cabelo escuro. Uma marca de nascença no nariz. Não, eu não sei o que ele tem vestido. Talvez 82 quilos - não, 73. 79. Não, ele não tem acesso a um veículo."

Quando me perguntaram qual o dia dos anos dele tive uma branca e só conseguia lembrar-me do aniversário do meu ex-namorado. "Mas ele tem 25 anos", respondi com o rosto corado.

Eu só percebi que a carta de suicídio tinha uma segunda página quando a entreguei a um dos agentes da autoridade portuária em Fort Lee, Nova Jérsia. Eu tinha parado de ler depois da primeira linha quando vi as palavras "acabar com a minha vida" escritas na sua letra gatafunhada e tremida ao cimo da página.

"Desculpe, mas vamos ter de ficar com isto", disse o agente, enquanto a luz brilhante da máquina me fazia ver manchas nos olhos enquanto ele digitalizava as páginas.

Mais tarde, naquela noite, desmoronei no chão com o colega de quarto de Andreas e a namorada dele. Estávamos a beber tequila diretamente da garrafa, com a adrenalina demasiado alta para absorver o impacto das últimas horas.

"Vocês acreditam", lembro-me de lhes ter dito, "que com apenas um telefonema nós conseguimos pôr um helicóptero nos céus?"

Parecia impossível que apenas cinco horas antes eu estivesse a decidir se encomendava tailandês ou sushi e agora os mergulhadores estivessem a procurar o meu namorado na escuridão do rio Hudson.

A apreensão da carta de suicídio foi a primeira de uma série de pequenas mas cumulativas perdas que tiveram origem naquele primeiro evento sísmico. Quando as roupas dele perderam o cheiro do seu perfume depois de alguns dias, peguei no frasco de água-de-colónia que estava em cima da sua cómoda.

Em momentos de pânico, quando achava que estava a começar a esquecer o tom da voz dele, ouvia mensagens antigas do correio de voz, especialmente aquelas em que ele dizia que me amava. Na noite do seu desaparecimento, tinha-me despido e procurado as marcas dele no meu corpo - um hematoma ou mesmo um arranhão - mas não encontrei nada.

Vasculhei também o seu lixo, recolhi as etiquetas da loja onde ele tinha comprado a roupa para usar no Dia de Ação de Graças, e recibos antigos da cafetaria que frequentávamos nas tardes de sábado preguiçosas. Mantinha essas coisas escondidas ao acaso nas divisórias da minha carteira e nos bolsos dos casacos, certificando-me de que tinha uma ligação física com ele em todos os momentos.

No início, embebedava-me e publicava pedidos desesperados dirigidos a ele no Twitter, tarde na noite, no caso de ele ter ficado on-line. Com o passar do tempo, passei a escrever-lhe e-mails, o que parecia tão desesperado como atirar uma garrafa com uma mensagem ao mar.

Enviei-lhe listas de todas as coisas que tínhamos planeado fazer juntos: saltar de paraquedas, aprender a assar um frango inteiro, viajar para a Grécia, para que eu pudesse conhecer a aldeia da família dele. Apesar de ter perdido a esperança de que ele estivesse a ler os meus e-mails com o passar das semanas, escrever-lhe antes de adormecer era uma das poucas coisas que me acalmavam.

Num desses e-mails, disse a Andreas que tinha começado a fazer terapia. Há meses que ele me estava a pressionar para encontrar um terapeuta, depois de ter passado por uma má experiência no final do verão. Colocar esse incidente no passado era uma coisa para a qual eu estava pronta e era capaz de fazer, mas a minha vontade de compartimentar preocupava-o.

Andreas tinha encontrado o seu próprio terapeuta online e todas as semanas ele me enviava links para diferentes médicos - geralmente mulheres judias de meia-idade - e pedia-me para avançar. Ele fixou-se numa em particular, uma mulher chamada Carole, que ele decidiu que seria perfeita para mim.

"Já ligaste à Carole?", perguntava pelo menos uma vez por dia.

Eu arranjava desculpas dizendo-lhe que não fazia sentido porque o meu seguro estava prestes a acabar, ou que trabalhar em dois empregos fazia que fosse impossível programar uma marcação regular.

Uma vez rendi-me e brinquei à terapia com ele, esparramando-me no sofá enquanto ele me fazia perguntas num tom falsete de mulher. Quando finalmente ele me fez confessar uma das minhas inseguranças mais profundas, ficou tão perturbado com o que eu disse que saltou para cima de mim.

"Espero que Carole não faça isso", disse eu enquanto ele beijava o meu pescoço furiosamente.

Afinal, ele tinha razão: eu adorava a terapia. Contava os dias que faltavam para as minhas consultas semanais e não sei como poderia ter sobrevivido naquele inverno sem elas.

Mas a terapia não tinha mudado o facto de eu continuar a ser muitíssimo bem-sucedida a agir normalmente enquanto o meu mundo se desmoronava. "Toda a gente acha que estou muito bem, e acho que é verdade", escrevi a Andreas num dos meus últimos e-mails. "Mas eu quero partir coisas constantemente. Fantasio sobre destruir montras de lojas ou gritar com as pessoas. Às vezes penso em bater-te e puxar-te o cabelo, mas a fantasia acaba sempre comigo a beijar-te." O corpo de Andreas foi retirado do rio East dois meses e meio depois de ele ter desaparecido, a poucos dias do que seria o aniversário do nosso primeiro ano de namoro. Na sua carta de despedida, ele havia escrito que queria as suas cinzas espalhadas no mar Mediterrâneo, quando chegasse a altura.

Contra a tradição grega e judaica, a família dele cremou o corpo. No verão, viajaram para a Grécia, como fazem todos os anos, e atiraram as cinzas de Andreas ao mar ao nascer do Sol.

No dia seguinte, fui a um salão de tatuagens com a minha irmã no East Village, a poucos minutos de onde Andreas morara. Depois de alguns minutos dolorosos, ficou pronta; a palavra "alguém" escrita em grego corria verticalmente pelas minhas costas.

A minha terapeuta - uma mulher judia de meia-idade - tinha-se mostrado cética sobre a minha intenção de fazer a tatuagem. "Você acha que vai querer esse lembrete na cama consigo, um dia, quando estiver com outro homem?", perguntou.

"Não sei," respondi-lhe.

Poucos meses depois, acordei ao nascer do Sol ao lado de um homem que mal conhecia, num qualquer lugar no Central Harlem. Fiquei imóvel para evitar a ressaca e pensei em como, pela primeira vez em meses, me sentia leve.

Quando me levantei para usar a casa de banho, vislumbrei o meu corpo nu no seu espelho de cor-po inteiro. Virei-me de lado para conseguir ver a tatuagem, que parecia menor do que eu recordava, e sorri.

Escritora, vive em Brooklyn e trabalha em comunicações sem fins lucrativos.
Exclusivo DN/The New York Times

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