Uma sereia tão pequena
Que Hans Christian Andersen teve uma ligação a Portugal, país onde esteve alguns meses em 1866, é facto por demais sabido, quase lugar-comum, mas o que menos se conhece é que uma das suas obras mais famosas, Den Lille Havfrue (sim, A Pequena Sereia), tem conexões lusas inesperadas. Vamos a elas.
Num livro que descreve à minúcia a génese do conto de Andersen, Hans Christian Andersen's The Little Mermaid − From fairy-tale to national monument (Grad Publishers, 2010), Christopher Bo Bramsen começa por salientar a existência de um singular conjunto de azulejos no "Palacio de los Fronteira" (!), em Lisboa. E, de facto, na esplendorosa quinta dos marqueses de Fronteira, a Benfica, deparamos com dois painéis azulejares que mostram, em cada qual, uma sereia-fêmea e uma sereia-macho (um sereio?) em alegres folguedos no leito dos oceanos. Num dos painéis, o macho tem uma rija barba, até chifres na testa; no outro, numa cena de grande arrojo, a sereia expõe o seu sexo em nudez frontal, enquanto acaricia com a mão uma das nádegas do companheiro. Razão têm os especialistas, como José Meco, ao salientarem o carácter anedótico e a irreverência descarada da azulejaria do Palácio Fronteira, na qual "aparece um extenso mundo fantástico virado às avessas, em representação animal, no meio do qual alguns humanos são apenas o complemento e o modelo deste bestiário sem regras nem modos, exemplificados nos comportamentos e actos "eventualmente chocantes"" de diversas figuras (in Pascal Quignard, A Fronteira, 1992).
Talvez os machos-sereia do Palácio Fronteira tenham sido, nas suas vidas pretéritas, honestíssimos marinheiros que o canto das ninfas das águas seduziu para todo o sempre. Talvez o que ali vejamos, naqueles azulejos carnais, quase lúbricos, sejam antigos seres humanos que as sereias enlaçaram, no encanto da voz e nos longos cabelos, e transportaram para as profundezas dos oceanos. É timbre das sereias terem uma sonoridade única, irresistível, já dizendo Shakespeare, em Sonho de Uma Noite de Verão, "Quando me sentei num promontório/ E ouvi uma sereia no dorso de um delfim/ A verter tal doce e mavioso canto/ Que o mar bravio se amansou à sua canção". É também seu apanágio não possuírem alma e terem, além disso, uma elevada esperança de vida: atingem os 300 anos, mas, uma vez falecidas, transformam-se na espuma das ondas e, ao contrário dos humanos, não são bafejadas pela promessa da vida eterna.
Talvez a representação mais famosa de uma sereia não seja de uma autêntica sereia, mas a de Vénus no quadro que Botticelli pintou em 1484-85, hoje exposto nos Uffizi, em Florença, onde também se encontra outra Vénus fascinante, a escultura grega de Afrodite, nascida da espuma das águas (aphrós, em grego, significa "espuma"). Ao viajar por Itália em 1833, Andersen ficou extasiado com a pintura de Botticelli, mas sobretudo com a estátua de Afrodite, à qual dedicou um poema, dizendo mais tarde que os olhos de mármore da deusa grega tiveram sobre ele um efeito misterioso e arrebatador, poderosíssimo.
Desde criança, aos 8 anos, Andersen ficara seduzido pelo canto das sereias, quando assistiu em Odense, a sua terra natal, a uma representação da peça romântico-cómica A Sereia do Danúbio, escrita em 1798 pelo austríaco Ferdinand Krauer. Mais tarde, na adolescência, conheceu de perto o folclore e as histórias mitológicas da Dinamarca e ficou cativado por dois autores alemães, Goethe e Ludwig Tieck, cujas obras abordaram, mais do que uma vez, a temática das estranhas ninfas das águas. A Melusina de Goethe, concebida em 1807, era uma criatura minúscula que cabia numa caixa de fósforos, tal qual a pequena sereia que Andersen irá conceber anos mais tarde. Em boa verdade, o tema e até o enredo não foram criações originais da sua lavra, pois de há muito que a literatura romântica explorava o tópico dos seres femininos que vivem nas águas e ascendem ao mundo terrestre ou, ao invés, dos humanos que se convertem em criaturas dos mares e aí vivem eternamente.
Em 1836, então com 31 anos, Andersen escreveu o seu conto sobre uma pequena sereia que vive no fundo dos mares na companhia das suas irmãs mais velhas. Contudo, enquanto estas estavam contentes com a vida que tinham, passada no mundo submarino a seduzir marinheiros incautos, a mais nova da família tinha uma imensa curiosidade pelo que se passava lá em cima, nas terras dos humanos. A sua avó dissera-lhe que, ao contrário destes, as sereias não tinham uma alma imortal e que, ao fim de 300 anos de vida, acabariam transformadas em espuma das ondas, a menos que conseguissem conquistar o amor de um ser humano. O resto da história é por demais conhecido, mas importa salientar uma nuance importante da criação de Andersen: no final, incapaz de matar o príncipe seu amado para salvar a própria vida, a pequena sereia transforma-se em espuma, mas é resgatada pelas fadas do céu e com elas ascende às alturas máximas. Andersen explicaria mais tarde a escolha deste final: por um lado, ele destinava-se a evitar que a sua personagem tivesse um fim trágico, desvanecendo-se nas ondas dos mares; por outro, separar o destino da sereia e do príncipe, ou seja, não fazer depender a imortalidade dela de qualquer gesto do seu amado, tanto mais que este entretanto se casara com outra mulher. É uma diferença de vulto em relação à literatura canónica sobre sereias, nomeadamente em relação àquela que foi a maior fonte de inspiração do jovem autor dinamarquês, a novela Undine, escrita em 1811 por Friedrich de la Motte, barão Fouqué. Em Undine, a fada das águas, para salvar a pele, não hesita em matar o cavaleiro seu amado; no conto de Andersen, pelo contrário, a pequena sereia, tendo oportunidade de assassinar o príncipe para evitar a morte, recusa a hipótese homicida. Bendita seja.
A narrativa é, assim, bem mais complexa do que a de uma mera historieta para crianças. A pequena sereia tem, diante de si, dois caminhos extremos, o da felicidade dupla, plena e total (casar-se com o príncipe e, do mesmo passo, conquistar a imortalidade) e o da infelicidade completa (perder o amado e, por isso, desfazer-se em espuma). Andersen estava consciente de que um final trágico comportaria para a sua heroína uma tripla desgraça: perder o amor do príncipe, abandonar a esperança da vida eterna e morrer aos 15 anos, tornada espuma. Daí que tenha concebido um final imaginativo e engenhoso, chegando a uma solução de compromisso: a sereia não faz o pleno da felicidade, pois perde o amor do seu príncipe, mas também não sofre uma desventura completa, sendo miraculosamente resgatada pelas filhas dos céus. Eis uma trouvaille que por certo agradará a algumas feministas: a felicidade da sereia, ao contrário do que é comum nas histórias de fadas, não fica à mercê do amor de um homem; ela torna-se uma mulher independente e autónoma, que não carece do amparo masculino para se realizar e ser feliz. A história da lille havfrue não tem um happy ending convencional e clássico nem culmina num casamento redentor, mas também não acaba de forma totalmente trágica ou desoladora.
E agora, mais uma nota portuguesa. Em 1907, o director de palco do Teatro Real de Copenhaga, Julius Lehmann, contactou o responsável pelo ballet desse teatro, Hans Beck, dizendo-lhe que tinha escrito o texto para um bailado baseado no popular conto de Hans Christian Andersen. Juntos, decidiram o nome do autor da música, um compositor famoso na época, Valdemar Fini Henriques. Não sou versado em genealogias e nas suas filigranas onomásticas, mas não foi difícil perceber que este Henriques tinha origem judaica e, muito provavelmente, portuguesa. Na internet, falam até no antepassado de todos os Henriques que se espraiaram pelo norte da Europa, um tal Henrique de Cáceres nascido em Santa Comba Dão em 1541 e falecido nas fogueiras da Inquisição de Lisboa, em 1609. Era casado com uma Guiomar Gomes, sepultada no cemitério de Altona, em Hamburgo (é, aliás, a primeira pessoa judia enterrada nesse cemitério, em 1613). Daí descendem os Henriques da Alemanha, da Suécia, da Dinamarca, um dos quais foi dono da conhecida fábrica de porcelanas Bing & Grøndahl, uma rival da Royal Copenhagen, com a qual recentemente se fundiu.
Fini Henriques fez a música e, na Primavera de 1909, o ballet A Pequena Sereia foi levado à cena no Teatro Real de Copenhaga, tendo por solista uma bailarina famosa, Ellen Price de Plane. Na assistência encontrava-se um amador de ballet e das belas-artes, Carl Jacobsen, filho do fundador da Carlsberg, que expandiu enormemente a empresa cervejeira do pai e se tornou o maior filantropo e mecenas da Dinamarca. Jacobsen ficou de tal forma deslumbrado com o bailado e com a interpretação de Ellen Price que ali mesmo, terminado o espectáculo, prometeu que iria ser erguida uma estátua da pequena sereia no porto de Copenhaga, em homenagem à criação imortal de Hans Christian Andersen.
Em Janeiro de 1910, o mecenas avistou-se com o escultor Edvard Eriksen, a quem encomendou a estátua. Ellen Price, escolhida como modelo, declinou a proposta, por considerar que uma primeira-bailarina do Teatro Real não poderia posar nua para um escultor, tendo Eriksen de usar para o efeito a sua própria mulher, a bela Eline, que já antes posara nua para outras obras do marido. O rosto da estátua, porém, não é o dela, mas sim, quase a papel químico, o da Vénus de Botticelli, que tanto fascinara Andrtsen (e digam lá se não é lindo este mundo, com tantos cruzamentos e encontros insuspeitos). Feitos os primeiros esboços, houve algum atrito entre o mecenas e o artista: Eriksen modelara uma rapariga nua, com braços e pernas, que de sereia nada tinha pois, segundo ele, já havia sido transformada em ser humano graças ao poder do amor; Jacobsen entendeu, e bem, que, se assim fosse, aquela seria a escultura de uma mulher, igual a tantas, banal e vulgar e que, por isso, a sereia deveria ser figurada como sereia que o era, com barbatanas no lugar das pernas, ou seja, antes da metamorfose humana. Muito a custo, Eriksen aceitou colocar junto aos pés umas barbatanas discretas, quase imperceptíveis, que não desfeiam o conjunto nem o desumanizam, mas aludem, ainda assim, à condição marinha da ninfa pousada sobre a rocha. Esta solução de compromisso acabou por se revelar a melhor de todas: uma mulher desprovida de pernas, totalmente anfíbia, como pretendia o dono da Carlsberg, seria demasiado bizarra, monstruosa até; ao invés, uma mulher igual às outras, sem qualquer alusão aos mares, como queria Eriksen, dificilmente seria vista como a sereia do grande Andersen.
Colocada no passeio de Langelinie, a escultura da sereia minúscula tornar-se-ia o símbolo maior de Copenhaga e um emblema da Dinamarca. Infelizmente, tem sido vítima da barbárie humana e, desde os anos 1960, sucedem-se os actos de vandalismo: em 1961, pintaram-lhe o cabelo de vermelho e um sutiã branco ao peito; dois anos depois, tingiram-lhe o corpo todo de encarnado; em 1964, decapitaram-na, uma tristeza miserável; nos anos 1970, foi várias vezes grafitada; em Julho de 1984, cortaram-lhe o braço direito; em Agosto de 1990, tentaram decapitá-la de novo, fazendo-lhe um fundo golpe no pescoço; em Setembro de 2003, dinamitaram a rocha do pedestal, fazendo-a tombar sobre as águas, desamparada. Como se não bastasse, o manuscrito do conto da sereia, comprado pela Casa Hans Christian Andersen, de Odense, em 1920, foi furtado em 1992 e nunca mais apareceu (graças aos deuses, havia uma cópia em microfilme).
Perante tantos e tão graves desatinos, causa estranheza que uma sereia tão bela, tão pequena, tenha por sonho converter-se em humano. No mundo terreno cá de cima, há gente que vandaliza estátuas, gente que destrói os monumentos, que pinta rabiscos idiotas nas paredes, que rouba manuscritos de museus e jamais os devolve. Mas também há gente que escreve histórias belas de sereias, que faz bailados e esculturas graciosas, que pinta azulejos mirabolantes em palácios de marqueses. Haja esperança, pois, até porque, apesar da Ómicron, hoje é Natal no nosso mundo.
Boas Festas.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia