Uma pergunta inconveniente

Publicado a
Atualizado a

"Por exemplo, no planeta Terra, o homem sempre se achou mais inteligente do que os golfinhos, por ter conseguido coisas como a roda, Nova Iorque, guerras e assim; enquanto os golfinhos, tudo o que fizeram foi passar um bom bocado divertindo-se e chafurdando na água. Ao contrário, os golfinhos sempre se acharam mais inteligentes do que o homem, exactamente pelas mesmas razões."

Douglas Adams in 'So Long and Thanks For All The Fish'

Um dia fiz uma pergunta ao Al Gore. Foi em Cannes, numa pregação sobre o aquecimento global. A pergunta foi sobre a população e os seus números. Se não seria irracional pensar-se que poderíamos ter um planeta equilibrado e sustentável, e tomar medidas eficazes contra o aquecimento global provocado pela actividade humana, sem diminuir a actividade humana? E se diminuir a actividade humana não implicaria diminuir o número de humanos?

Ou seja, se não seria impossível reverter os efeitos do aquecimento global e da escassez de recursos devido à voracidade da espécie sem diminuir os números da própria?

Uma pergunta malthusiana. Uma pergunta inconveniente. O Al Gore escolheu outras perguntas e não respondeu à minha. Nunca nenhum político ou pregador admitirá que somos demais. Que, se calhar, a sobrevivência da espécie depende da redução dos seus números.

A pergunta, para além de inconveniente, era estúpida. Talvez não fosse estúpida para um golfinho, mas era para o humano que se preza.

A fé que temos em nós próprios e no nosso engenho para domar a natureza não tem limites. A inteligência de que somos capazes está ao serviço do crescimento, mais do que da sobrevivência: do crescimento da economia, do consumo, da esperança de vida, da população, do aquecimento global, do solo arável, dos rebanhos, da produção de carne, da produção agrícola, da emissão de CO2, dos números - todos os números. Crescer é o nosso mantra, é o fado da espécie. Somos uma espécie que cresce, custe o que custar, acreditando que não há tecto ao nosso de-senvolvimento, que havemos de arranjar sempre uma solução e que podemos continuar a nascer e a crescer como se não houvesse amanhã. Temos imensa fé. Mas teremos amanhã?

Os números mostram que somos uma praga no planeta.

A nossa espécie levou cerca de 200 mil anos a chegar aos 1000 milhões de indivíduos; foi no ano de 1804. Mas quando o meu avô nasceu, em 1900, já éramos cerca de 1600 milhões de indivíduos. Em 1930, quando o meu pai nasceu, o número era de 2000 milhões. E quando eu nasci, em 1961, o número tinha passado os 3000 milhões. Daqui a dez anos, teremos passado os 8000 milhões. Se ainda cá estivermos de boa saúde.

Os dois gráficos ilustram crescimentos exponenciais: um de uma colónia de bactérias, o outro da evolução da espécie humana. Não admira que muitos cientistas falem de nós como uma praga que infesta o planeta e consome os seus recursos; previsivelmente enquanto houver recursos e não houver predadores. Quando deixar de haver recursos e o planeta resolver regular-nos a existência, acontecer-nos-á o que acontece às pragas: uma vez atingido o pico, o gráfico cairá tão abruptamente como cresceu, até atingir valores normais, ou sustentáveis.

Parar o aquecimento global pode ser uma tarefa impossível sem a redução da actividade que o promove, a actividade humana, ou seja, os humanos. Mas a nossa inteligência está, naturalmente, dedicada ao crescimento e à solução dos problemas que o impedem; não à redução do nosso número. Isso seria inteligência de golfinho.

No livro de Douglas Adams, que cito no início - um dos volumes do Guia Galáctico do Pendura, The Hitchhiker"s Guide to the Galaxy -, os golfinhos, a segunda espécie mais inteligente do planeta, abandonam a Terra antes da sua destruição. Mas não são os únicos. Também os ratos fogem quando se dão conta do fim. Na história, os ratos são cientistas responsáveis pelo grande laboratório que é a Terra. Os humanos, que estavam convencidos de ser a espécie dominante, eram apenas cobaias, sujeitos de uma grande experiência gerida por ratos. Essa, sim, a espécie mais inteligente.

Hoje, quando os líderes dos Estados do mundo se reúnem em Paris para tentar chegar a um acordo sobre como parar o vento com as mãos, imagino a cimeira como um grande laboratório cercado por centenas de ratos atentos e a tirar notas.

O Guia Galáctico do Pendura é um belíssimo livro sobre a destruição da terra e da espécie humana. Há livros mais circunspectos, mais recentes e com mais estatística sobre o assunto - Collapse, de Jared Diamond, é dos melhores no género "agora a sério"; nele se demonstra que em quase todos os casos de colapso a raiz do problema foi a sobrepopulação - mas nenhum é mais divertido. O Guia Galáctico do Pendura começa com a destruição da Terra para deixar passar uma imprescindível via rápida intergaláctica; em nome do progresso, portanto. Aquilo que antes lia como facécia, hoje, soa-me a profecia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt