Longe, a perto de 13 mil milhões de anos-luz, nos confins do Universo conhecido, habita o ponto de luz descoberto em 2015 pela equipa encabeçada pelo astrofísico português David Sobral. O enxame de estrelas conhecido como galáxia CR7, pulsa na solidão do Universo primordial. Um ambiente diferente daquele que nos oferece o céu lisboeta a derramar-se numa luz difusa sobre o Tejo. É à beira-mar que se dá a conversa com David Sobral que acaba de entregar aos escaparates o livro Qual é o Nosso Lugar no Universo? (edição Planeta). Uma troca de palavras com o professor associado de Astrofísica na Universidade de Lancaster, no Reino Unido, que olha para o incomensuravelmente grande, mas também para a partícula, para a dimensão humana. "Com o meu livro quero partilhar a viagem da humanidade como um todo, a forma como nos vemos no Mundo e no Universo", adianta-nos David como introito à conversa..Terá o céu noturno deixado de encantar uma sociedade fascinada com o brilho dos ecrãs que tem entre as mãos? O telemóvel pode trazer-nos satisfação imediata, mas no céu há imensa beleza. Portugal tem excelentes condições para olhar para esse céu noturno fora dos grandes centros populacionais. Um dos primeiros passos nessa apreensão é perceber o quanto o céu está ligado a nós enquanto pessoas singulares e humanidade. No livro, recordo que um décimo do que nos compõe veio diretamente do início do Universo, o momento inicial a que chamamos Big Bang. Nessa perspetiva, uma parte de nós é tão velha como o Universo..Isso significa recuarmos mais de 13 mil milhões de anos, provavelmente não estamos preparados para lidar com uma escala de tempo tão grande. Sim, mas traz-nos humildade o que, julgo, é bom. Permite-nos interpretar a nossa vida a uma outra escala e minorar problemas que consideramos imensos. O facto de conseguirmos perceber essa insignificância é uma grande vitória. A resposta à pergunta, "qual é o nosso lugar no Universo?", implica perceber que esse lugar é cada vez mais pequeno e esse reposicionamento é uma conquista da humanidade como um todo. Há algumas centenas de anos, víamo-nos como o centro do Universo. Por exemplo, a astrologia, nas suas origens, determinou que a posição dos astros e do Sol afetavam a nossa vida. Quando percebemos que não estávamos no centro do sistema solar, nem da galáxia, o contexto tornou-se maior, a nossa visão do mundo mudou.Fala da astrologia. No seu livro diz-nos que os signos do zodíaco são como fake news. Porquê? [Risos] Sim são na verdade fake news, desfasadas 2000 anos. O Sol, assim como os planetas, moveram-se na galáxia nos últimos milhares de anos. A astrologia diz-nos que, quando uma criança nasce, a posição do Sol alinhada com uma determinada constelação dá-nos o signo. Contudo, passaram-se séculos desde as primeiras observações astrológicas e o Sol, assim como todos os planetas, moveram-se na galáxia ao longo do tempo. Mais importante do que a posição do Sol no momento em que alguém nasce é o contexto em que nasce, o contexto social e económico, a família, entre outros fatores..Em Portugal, crise é palavra na ordem do dia. O David vai mais longe, viaja aos confins do Universo para nos dizer que este está em crise há 11 mil milhões de anos. Que crise é esta e como lhe resiste o Universo tanto tempo? Em princípio as galáxias não se queixam da crise [risos]. A taxa de formação de novas estrelas no cosmo é, no presente, 30 vezes menor do que foi no seu auge. Mas, o que procuro mostrar ao longo do livro é que em todos os aspetos da vida há uma dimensão positiva e negativa. Uma das consequências positivas para a vida é que esta se tornou possível dado a atividade do Universo não ser muito intensa. Caso contrário, a vida seria destruída. Algumas das estrelas que explodem como supernovas erradicariam a vida imediatamente. Imagine se tivéssemos estrelas com este comportamento próximo da Terra. Por um lado, é verdade que o universo está, por exemplo, a produzir cada vez menos oxigénio, mas por outro está a "amadurecer" e a ter condições para o desenvolvimento de vida..O que faz um astrofísico extragalático? Um nome muito pomposo [risos]. Foi a estudar galáxias que descobrimos que o Universo é imensamente maior do que julgávamos. Há aspetos muito pragmáticos e práticos, como dar aulas numa universidade. No que respeita à investigação, fazemos observações em telescópios em diferentes pontos da Terra. Talvez um dos melhores aspetos é o viajar até locais como o Havai, as Canárias ou o Chile. Por vezes, há que fazer mapeamentos para descobrir coisas que nunca foram vistas, estudar em detalhe o que é descoberto, muita programação, discussão de ideias com colegas, um pouco por todo o mundo, e falhar, falhar, falhar, continuamente, até chegar ao sucesso. Falhar faz parte da ciência e, naturalmente, está presente nesta área de vanguarda..Já descobriu centenas de galáxias e levou o seu olhar, através de telescópios, aos confins do Universo. Quando aí chega sente que está num limite ou numa fronteira? Julgo que é sempre uma fronteira. Quem faz ciência está a tentar puxar as fronteiras mais além. São raras as pessoas que chegam ao suposto limite e que por aí se ficam. Sobretudo, quando falo da descoberta da CR7 [galáxia a 12,9 mil milhões de anos-luz descoberta pela equipa de David Sobral em 2015] ou outras galáxias superdistantes, temos a expressão do "Uau", mas, no dia seguinte, estamos a ver esse limite como uma fronteira que queremos passar..Quão longe no Universo já chegou o David? O meu recorde talvez seja as proximidades da CR7 [COSMOS Redshift 7], quase 13 mil milhões de anos para trás no tempo. Mas o recorde absoluto está em 13,3 a 13,4 mil milhões de anos-luz. Com o lançamento do novo telescópio espacial [James Webb] vamos chegar muito mais longe..O que significou para o David a descoberta da galáxia CR7? Ainda em 2012, a descoberta da crise cósmica, a que chamámos PIB Cósmico, de que já falámos, foi anunciada um pouco por todo o mundo. O The New York Times, por exemplo, fez uma peça muito interessante. A própria motivação, a de uma crise cósmica, tinha um pouco a ver com o contexto mundial. Mas a descoberta da CR7 chegou a muito mais gente. Julgo que a forma como o nome foi atribuído em alusão ao Cristiano Ronaldo, interessou pessoas que nunca leriam sobre ciência..O David viu-se envolvido em episódios internacionais de mesquinhez provocados pela descoberta da CR7. Não estava à espera, presumo. Sim e prolongou-se por alguns anos. Na época, não me passava pela cabeça que iria ser assim. Tinha a ideia, talvez motivada pelo que lemos nos livros e vemos nos filmes, de que feita uma descoberta importante as coisas poderiam ficar mais fáceis, não mais difíceis. Acabei por descobrir que também há o outro lado da ciência. Somos humanos, os cientistas não são perfeitos. Acresce que é uma área em que, em muitos casos, há elevada pressão e competição..A criatividade tem lugar na atividade de um astrónomo ou astrofísico? Sim, sobretudo como eu vejo a astrofísica. Podemos dizer que podemos ser pouco criativos, se olharmos numa perspetiva científica. No meu trabalho, sou criativo no método, na maneira de procurar e também na interpretação. Claro que é uma criatividade diferente da literatura ou da pintura..Porque foi tão difícil à comunidade científica assumir que as nebulosas estranhas no céu eram galáxias? Para além da criatividade que referiu, a diversidade também é importante numa perspetiva masculina e feminina, assim como a de convocar todas as culturas para a descoberta. No passado, a ciência fazia-se em sociedades específicas, em franjas da sociedade, o que fechava a abordagem. Costumo dizer que tinha de se ter o cromossoma Y e ser branco para se fazer ciência. No caso da descoberta das galáxias tivemos o contributo da norte-americana Henrietta Leavitt, fora do meio, o que lhe permitiu mudar o paradigma e descobrir a astrofísica extragalática..Ainda no feminino. Nas 12 obras que recomenda no final do seu livro praticamente não encontramos a referência a autoras... E já partiu de um esforço por falta de nomes no feminino. Por exemplo, no que respeita à entrada para cursos não nos deparamos com essa disparidade. Continua a haver um problema quando chegamos aos níveis mais altos da carreira universitária. Brinco com essa realidade no livro, ou seja, é mais fácil encontrar uma agulha no palheiro do que uma professora catedrática em astrofísica em Portugal, porque não existe. Outro problema prende-se com a longa ausência de contratações em Portugal para astrofísica. Mais, para se fazer investigação a longo prazo estamos sempre a pensar no que nos vai acontecer após três anos, devido aos contratos a termo certo..A criança que era o David e que olhava o céu noturno, nas férias de Verão, na Ilha do Pessegueiro, tinha a cabeça repleta de perguntas inquietas? Recordo-me que achava o céu lindo. Lembro-me de ver as estrelas cadentes. Sempre fui curioso, mas a astronomia não era uma área em específico sobre a qual fizesse perguntas..A mudança dá-se em 2004. O que sentiu o jovem aspirante a estudante de literatura ao entrar na sala central do Observatório para uma palestra sobre buracos negros? Na época, estava convencidíssimo de que seguiria literatura, escrevia para o DN Jovem todas as semanas, queria ser como o escritor José Luís Peixoto. Mas, ao mesmo tempo, gostava de ciências, era bom aluno a matemática e física. Julgo que o momento de transição foi quando a Fundação para a Ciência e a Tecnologia me deu a oportunidade de participar num curso de transição, antes de ingressar em literatura, e de me apaixonar pela física. Comecei a ler um pouco mais sobre a física, sobretudo o livro do João Magueijo, Mais Rápido do que a Luz, pois escrevia divulgação científica com uns toques literários. Acabei por me candidatar a astrofísica..A sua vida mudou no dia em que viaja até à Escócia e não percebe que está numa entrevista para um lugar num projeto de astrofísica... Falaram-me da investigação que se fazia em Edimburgo na astrofísica extragalática, mas a minha ideia era ir para Londres. Em Portugal, já não estava a gostar do curso, queria fazer investigação. Enviei uns e-mails a dois possíveis orientadores de doutoramento do Institute for Astronomy, em Edimburgo, e acho que foi uma sorte ter tido a resposta de Philip Best, que acabou por ser o meu orientador de doutoramento. Ao chegar fui encaminhado para uma sala onde estavam dois nomes gigantes da astronomia que, na época, não conhecia, John Peacock e Alan Heavens. Após algumas perguntas, percebi que estava numa entrevista formal. Correu bem, fui aceite para doutoramento.."Não somos estrelas, mas o nosso brilho vem daquilo que decidimos fazer com a poeira de estrelas que nos dá forma e que respiramos". O David quer explicar-nos este parágrafo do seu livro? De facto, por não termos brilho próprio, é óbvio que não somos estrelas. Vivemos muito pouco tempo. Contudo, temos a ilusão de vivermos a liberdade que as estrelas não têm. Estas, ainda que sejam brilhantes, espetaculares, belas, em princípio, tudo o que lhes vai acontecer está pré-determinado pela física..Sim, mas falta na sua explicação a poeira... Somos consequência daquilo que as estrelas possibilitaram. Todos os átomos de oxigénio que nos permitem viver foram criados nas estrelas. As estrelas produzem materiais que se combinam durante milhares de milhões de anos. Aliás, uma das grandes questões é como a vida surge na prática. Mas é verdade, somos filhos nesse sentido, inclusivamente de várias gerações de estrelas. Tal como o Sol é filho de estrelas anteriores que explodiram como supernovas..Se se desse a oportunidade a um grupo de pessoas de encontrarem uma palavra que defina o trabalho de um astrónomo ou astrofísico, provavelmente iriam adjetivá-lo como "genial". Mas o David contraria essa abordagem. Todos somos potencialmente astrónomos e astrofísicos? Há a ideia de que é preciso ser-se um génio para praticar a astrofísica. Julgo que a palavra certa é resiliência..O que nos falta saber para concluirmos existir vida em planetas fora do nosso sistema solar? Como não existem dados concretos, sobre se existe ou não vida, diria que é quase impossível que não haja vida na nossa galáxia e por todo o Universo. Um dos grandes problemas passa pelas distâncias a que estes planetas estão, realmente muito longe. A 300 mil Km por segundo, a velocidade da luz, levaríamos dois a três anos a chegar à estrela mais próxima. No tempo das nossas vidas é impossível estabelecermos comunicação com essa eventual vida inteligente. Teremos eventuais boas notícias caso se dê a descoberta de vida ao nível microbiano. Telescópios como o James Webb, vai-nos permitir olhar para alguns dos candidatos a planetas habitáveis e encontrar alguns dos biomarcadores que nos indiquem essa existência.Finalmente, o que lhe sugere esta frase que Carl Sagan que, presumo, conhecerá: "O universo não parece ser nem benevolente nem hostil, apenas indiferente"? Diria que o Universo é bastante benevolente, no sentido em que quando começamos a explorar, em computadores, outros possíveis universos, percebemos que mais nenhum permite a vida. Ou seja, este nosso Universo, pelo menos, possibilita a presença de vida..dnot@dn.pt