Uma oração dançada para descobrir uma igreja esquecida
"Estas são as mãos de rezar. E nós entramos por aquela porta cheios de luz, estamos sob a influência de um espaço sagrado". Madalena Victorino desenha o movimento como quem narra uma história, antes de o ensaio começar na igreja de São Cristóvão. No espaço despojado da nave central, homens e mulheres hão de dançar aquilo que a coreógrafa descreve como "uma oração coreográfica que fazemos para esta casa sagrada".
Os gestos das mãos, a direção do olhar, a posição dos corpos foram convocados por esta igreja do século XIII (reconstruída em 1670) que resistiu ao Grande Terramoto no coração da Mouraria, em Lisboa. Com uma escala surpreendentemente humana, o templo é um exemplar raro das "igrejas do ouro" do primeiro Barroco, desenhado com um intenso pensamento teológico (o arquiteto responsável pela obra era também padre) e povoado pelas obras de um único pintor - Bento Coelho da Silveira, autor das 35 telas que recobrem paredes e altares, realizadas entre 1690 e 1703). Uma delas, A Morte de São José, inspira diretamente esta peça, trabalhada com seis bailarinos.
"O quadro é uma Pietá masculina, raríssima", explica Madalena, que escolheu Michel, de uma idade e base artística diferentes das dos outros bailarinos, para interpretar S.José, e chamou Ringue a esta obra em que se desenha "um combate franco entre a vida e a morte. E creio que na igreja acontece algo parecido, é o lugar onde as pessoas vêm confrontar-se com as questões principais da nossa existência". Ringue não tem respostas, tem "a figuração do peso e da leveza, da viagem, do transporte e do combate. Há a tentativa de cheirar o céu e de ouvir o que está debaixo da terra, é uma celebração que começa e acaba numa oração. E os santos, que estão numa posição interessante entre os deuses e os homens, saltam várias vezes dos altares".
Ir a um lugar esquecido
Os gestos que os bailarinos inscrevem nas pedras seculares ao som do Credo de José Tolentino de Mendonça e Mário Tronco, desenham uma peça fundamental do movimento que Madalena Victorino imaginou (um abraço, na verdade) e a que chamou Vão - "porque é imperativo ir a esta igreja esquecida, mas também por causa dos vãos de escada, esses lugares em que ninguém repara"-, mas não a única.
Haverá visitas participativas para crianças (abertas a famílias no dia 20, às 15.00 e 16.30, e a escolas de 15 a 26), recebidas com cantos e convidadas a apalpar as pedras e a dançar com santos, enquanto ouvem a história de São Cristóvão - "aquele que transporta Cristo"- que a lenda conta ser um gigante que atravessava pessoas e coisas de uma margem à outra do rio, até ao dia em que lhe apareceu a criança que tinha o peso do mundo nas mãos. Haverá também Corações ao Alto (dias 20, às 19.00 e 20.00, e 21, às 18.00 e 19.00), uma peça vocal de Margarida Mestre com 36 lisboetas que, nos vários espaços da igreja - fora e dentro, sagrados e não sagrados - vão recuperar cantos das várias religiões vividas na cidade. Por fim, na conversa sobre O Corpo, o Lugar e a Distância (dia 27, 19.00), há de perguntar-se se a dança pode ser uma oração, entre outras questões, num vai e vem entre a coreógrafa e Paulo Pires do Vale, o curador de Não te faltará a distância, exposição em quatro passos de que este programa é o primeiro.
No final de Vão, Madalena Victorino deixará em São Cristóvão uma carta coreográfica que qualquer visitante-viajante poderá usar como partitura. "É uma oração que usa o corpo para falar", resume, "para que as pessoas possam rezar de corpo inteiro".
Ringue
Igreja de São Cristovão, Mouraria
dia 12 - 20.00
dia 14 - 18.00, 19.00, 20.00
Entrada livre