Uma ópera cheia de teatro dentro

"Peter Grimes", de Britten, na encenação de David Alden, em cena no Teatro São Carlos. Últimas récitas amanhã e dia 7.
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E o Peter Grimes já chegou ao São Carlos! Na produção em cena até dia 7 (assistimos à 2.ª récita), avulta a encenação muito teatral de David Alden, onde cada pormenor, cada gesto e movimento têm um sentido, uma mensagem subliminar. Em simultâneo, usa com virtuosismo um vocabulário imagético onde coexistem em harmonia a elipse e o grotesco, o neo-realista e o burlesco, o ambiente simbolista e a estética expressionista.

Com a encenação se articulando intimamente, cenografia e desenho de luz são duas faces da mesma moeda nesta produção, indo desde o despojamento em cores cruas (ou monocromatismos, ou cambiantes de um mesmo tom), facultadas por grandes painéis evocativos da díade mar/céu que regula a vida daquelas pessoas, até composições pictóricas de belo efeito, mormente nas cenas de conjunto.

Todavia, transformar o "Boar"! (a taberna da Auntie) num lounge parece-nos tópico em demasia.... Os figurinos são livremente naturalistas, só os fatos domingueiros da comunidade piscatória parecendo exageradamente janotas; por fim, as coreografias fazem a ligação ao lado "broadway", music-hall e "masque" da partitura, mas em certos momentos são excessivas/redundantes e... distractivas.

No protagonista, John Graham-Hall não tem certamente o mais belo timbre de tenor (há ali uma certa qualidade de "clarim"...), mas usa-o a bom efeito na definição da sua personagem, e ao encontro das intenções do encenador, resultando o seu Grimes num personagem vívido e de uma complexidade próxima da esquizofrenia; a jovem Emily Newton soube parecer (bem) mais velha como Ellen Orford e dominou o papel com a suavidade do seu soprano lírico. Jonathan Summers (Balstrode) compôs um velho lobo-do-mar, mas ao mesmo tempo revelou-se o barómetro/autoridade moral de toda a comunidade: tivesse mais para cantar, este Balstrode poderia ter "dominado" a récita! Rebecca de Pont Davies foi uma Auntie muito urbana, "dandy", histriónica e ácida q.b. James Kryshak (Bob Boles) compôs um esplêndido pregador, teatral como vocalmente. Menos convincente, o Swallow de Graeme Danby. Os portugueses estiveram em bom plano, com destaque para a Mrs. Sedley de Maria Luísa de Freitas e sobretudo o Ned Keene de João Merino.

Falta um personagem importante: o Coro. E podemos dizer que o corpo coral do São Carlos se saiu bastante bem da difícil empreitada que é esta ópera tão coral, tanto mais que a componente teatral foi também ela muito exigente. No fosso, a Sinfónica Portuguesa assinou uma grande prestação: não só soube captar os ambientes da brilhante e variegada escrita orquestral de Britten, como também, impelida pela direção sabedora de Graeme Jenkins, soube definir o ritmo da obra e assumir-se como verdadeiro motor do drama.

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