Uma nova política para a Saúde?
A Iniciativa Liberal prepara-se para apresentar uma proposta para uma nova Lei de Bases da Saúde, pouco tempo depois da aprovação da última, publicada em DR em setembro de 2019.
Não sabemos ainda os seus fundamentos, embora seja de antever um modelo que envolva, na prestação pública, todos os operadores - públicos e privados. Mas percebemos bem a sua oportunidade: muitas dificuldades do SNS em responder à procura, listas de espera a perder de vista, milhares de utentes sem médico de família, Urgências confusas e intermitentes e procura privada a aumentar, com subsistemas e seguros a servir como boia de salvação para quem pode.
O SNS vai perdendo, assim, a sua capacidade de ser universal, gerar equidade no acesso e atender as pessoas quando efetivamente necessitam. Isso é fatal no cumprimento dos seus objetivos constitucionais, como bem fica atestado pelo enorme peso das despesas privadas, cerca de 35% do total. Urge, realmente, modificar a situação atual, com medidas de natureza estratégica que promovam a disponibilidade dos serviços públicos para toda a população, no tempo adequado.
Mas voltemos às ideias da IL. Parece, efetivamente, que a sua proposta pretende mudar o paradigma do acesso a cuidados: a procura poderá dirigir-se a quem se posicionar no mercado, seja público ou privado, e o financiamento, leia-se o pagamento dos serviços, será maioritariamente público, não sendo de excluir novas taxas moderadoras ou copagamentos.
Deste modo, acabam os constrangimentos e as listas de espera e todos os portugueses passam a ter acesso a cuidados de saúde. Parece simples, mas tal proposta deve ser analisada com cautela, com base no que se conhece sobre o mercado da Saúde e as relações entre prestadores, financiadores e consumidores.
Vejamos:
1. Este mercado é caracterizado por uma clara assimetria de informação entre o doente e o prestador: o primeiro apresenta-se com queixas ou mesmo sofrimento agudo, mas não sabe bem do que necessita; o segundo tem o conhecimento, utiliza instrumentos complementares de diagnóstico e define os procedimentos que se seguirão. Ou seja, quem define o nível de consumo de recursos é o prestador e não o doente, uma situação manifestamente atípica face ao que acontece noutros mercados (restauração, habitação, veículos automóveis, como exemplos) em que o cliente consegue, na essência, controlar o que vai gastar;
2. Esta capacidade do prestador ter na sua mão a definição da despesa, coloca a seguir a questão de saber quem paga. Se for o doente a pagar, este poderá assumir desde logo os encargos, proteger-se com um seguro ou subsistema de larga cobertura, ou, pelo contrário, interrogar o prestador sobre a pertinência de todas as intervenções propostas, tentar negociar preços ou pura e simplesmente desistir. Tudo isto vai depender da condição económica do doente e da sua situação clínica, mais ou menos urgente.
3. Se for o Estado a pagar, dentro de um seguro público universal e sem limites de cobertura, o doente não levanta qualquer objeção ao custo, que se torna para ele invisível. O prestador passa a definir livremente as técnicas que vai utilizar, os procedimentos a desenvolver, a medicação a prescrever e as modalidades de internamento ou de ambulatório que vai adotar. O impacto dos custos serão sentidos pelo Estado, que os cobrirá com as receitas dos impostos, naturalmente.
4. É aqui que se coloca a questão da propriedade e dos fins dos prestadores: se for um operador público, a sua conduta pode ser muito diferente da adotada por um operador privado. A prática clínica sem fins lucrativos, tem como único objetivo melhorar a vida dos doentes, e a prática privada, associa a este objetivo outro de idêntica importância - potenciar atividade e aumentar as margens de lucro. Estas constatações não são ideológicas, antes científicas, baseadas em milhares de evidências e de estudos comparativos realizados por todo o mundo.
5. Daqui decorre um conjunto de consequências para o interesse público. Se a prestação for exclusivamente pública, não há incentivos para aumentar a atividade, há tendência para que as listas de espera aumentem e as insuficiências técnicas na resposta possam suceder com frequência. Se a prestação for privada com fins lucrativos, os atos praticados sobre o doente tendem a aumentar, a sua pertinência é questionável e os custos aumentam significativamente. E se não houver entidades de monitorização sobre a qualidade e pertinência dos atos médicos (em Portugal não existe uma cultura de avaliação da prática clínica) a prestação privada pode aumentar a despesa sem controlo e sem ganhos assinaláveis em matéria de qualidade e bem-estar para os doentes.
Os riscos de se adotar a proposta da IL são, assim, muito elevados, porque a despesa pública disparará e os ganhos em saúde poderão ser reduzidos, com a "nuance" de se provocar ainda mais desigualdade no acesso (os mais informados, com mais poder de compra e residentes em zonas com mais oferta privada terão naturalmente mais acesso).
A realidade portuguesa atual tem, todavia, algumas especificidades que importa salientar: o setor público debate-se com graves problemas de organização e de gestão que conduzem a uma prestação de cuidados, muitas vezes desumanizada, com falhas de compromisso quanto a marcações e tempos de espera, falta de informação e de profissionalismo nas relações humanas e ausência de objetivos de serviço público quanto à redução das listas de espera.
O setor privado, em contraste, vai muito à frente na relação digital com os seus clientes, tornando-a apelativa e previsível, não tem listas de espera significativas e tem uma política clara de "serviço ao cliente".
Neste cenário, das duas uma: ou o SNS se reforma e se aproxima dos cidadãos a todos os níveis, ou, se não for capaz de o fazer, que passe a contratar com o privado um conjunto de prestações que preencham as falhas do serviço público. Este processo de contratualização - com metas de desempenho bem definidas e custos controlados - que teve já expressão bem-sucedida com as PPP nos hospitais, pode e deve ser também alargado aos cuidados primários, como forma de desbloquear a anomia reinante, em que o divórcio entre o que as pessoas precisam e os serviços públicos disponíveis é manifesto.
Em síntese, a proposta da IL é economicamente inviável e socialmente iníqua, sendo, todavia, de ponderar, face à atávica impotência de reforma do Estado, a contratualização séria e transparente de serviços públicos de Saúde com os privados. Não é tolerável manter a atual situação por muito mais tempo.
Administrador hospitalar
e antigo secretário de Estado da Saúde, entre 2015 e 2017