Uma nova Guerra Fria?

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Menos de um ano após o fim da II Guerra Mundial, o primeiro ministro britânico Winston Churchill avisava que "uma cortina de ferro" separava as democracias ocidentais dos países ocupados pela União Soviética. A Guerra Fria que se seguiu opôs duas formas de olhar o mundo e marcou o sistema internacional até à noite de 9 de novembro de 1989, quando a queda do Muro de Berlim simbolizou o rasgar da Cortina de Ferro e o início de uma década de colaboração à volta dos princípios do multilateralismo e da negociação internacional. Não sendo um sistema perfeito, permitiu resolver ou minorar alguns dos dramas e aflições do planeta, incluindo guerras e conflitos, independências e transições para a democracia, codificação de direitos internacionais e criação e reforço de novos direitos individuais e coletivos.

Com altos e baixos e maior ou menor eficácia, o sistema multilateral foi central nas relações internacionais até ao surgimento de líderes populistas em alguns países que influenciam o mundo de forma particular e a afirmação de outros que, nunca se sentindo confortáveis com a ideia e a prática de limitação da soberania nacional, tornaram-se mais afirmativos e mais vocais nas suas críticas.

Temos hoje uma parte da Comunidade Internacional, onde pontuam os Estados Unidos, a maior parte dos países da União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália, a Nova Zelândia, a África do Sul, Cabo Verde ou o Botswana que defendem o papel das organizações multilaterais na gestão dos assuntos do mundo e dos estados. Visões diferentes têm a Rússia ou a China, que entendem que a cooperação internacional não pode nem deve ter papel ou impacto na organização política interna dos países. Ou seja, para uns há um papel para a comunidade internacional na promoção de modelos que contribuam para o crescimento económico, o desenvolvimento social, a sustentabilidade ambiental e, também, a boa governação. Para outros, a cooperação em matérias internacionais é necessária mas no interior de cada país, e citando ditado popular, "só sabe o que se passa no convento quem mora lá dentro".

Estas visões diferentes do que é o papel da comunidade internacional tornaram-se mais centrais com a publicação do novo Conceito Estratégico Russo, que anuncia Moscovo como o garante das soberanias dos países que não se revêm num modelo multilateralista ocidental. E foi reafirmada numa reunião havida entre os presidentes Russo e Chinês, onde os princípios da soberania nacional foram sublinhados como elemento chave da organização do mundo.

Tal como na Guerra Fria de 1946/89, a diferença do entendimento do papel dos estados e da comunidade internacional entre os que defendem que há limites às soberanias nacionais e os que entendem que os estados são livres para tomarem as decisões internas que quiserem é substantiva e será cada vez mais importante.

Os estados do mundo precisam encontrar uma nova forma de legitimidade para a intervenção da comunidade internacional, mas a incapacidade de "aggiornamento" da maioria das organizações, que deveriam reconhecer que o mundo mudou e que as soluções que faziam sentido no séc. XX já não servem e prejudicam a sua capacidade de intervenção no séc. XXI terá que ser resolvida antes.
Ou seja, e infelizmente, a nova Guerra Fria estará para durar...


Investigador associado do CIEP / Universidade Católica Portuguesa
bicruz.dn@gmail.com

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