Uma noite em que o México saltou todos os muros
"Se ouvir o seu nome, não se levante logo", avisava o comediante Jimmy Kimmel no início da festa. O apresentador da 90ª cerimónia dos Óscares não podia deixar de fazer referência à gafe histórica da anterior edição, também por ele conduzida. E, pelo sim pelo não, quando Guillermo del Toro subiu ao palco do Dolby Theatre pela segunda vez (depois do prémio de realização), para receber a estatueta de melhor filme por essa obra tão pessoal que é A Forma da Água, a primeira coisa que fez foi confirmar o que estava no cartão que Warren Beatty lhe passou para as mãos: olhou rapidamente e sorriu para a plateia, como quem diz, "ganhámos mesmo!".
Sendo o título que detinha mais nomeações (13), é verdade que, ao lado de Três Cartazes à Beira da Estrada, a fantasia romântica do realizador mexicano estava muito bem posicionada para ganhar o principal galardão. Mas este momento não deixou de trazer um sentimento de surpresa: depois de Três Cartazes ter triunfado tanto nos Globos de Ouro como nos BAFTA, os votos da Academia de Hollywood mostraram que, afinal, um objeto cinematográfico pode ser mais do que a sua temática. Entenda-se, Três Cartazes é um filme essencialmente erguido pela força do tema coincidente com os escândalos da atualidade (uma mãe que quer vingar a violação e morte da filha), e A Forma da Água, numa palavra, é a celebração da própria cinefilia.
E de facto esta foi uma cerimónia que refletiu um espírito de comemoração - até no modo como Kimmel promoveu a ligação entre o público e as estrelas -, mais do que uma conjuntura para grandes discursos. Os diversos números musicais foram um sintoma disso mesmo: desde Mary J. Blige a Sufjan Stevens, passando pelas espetaculares interpretações de This is Me, do filme O Grande Showman, ou de Remember Me (a música vencedora, da também vitoriosa animação Coco), deram a expressão mais viva e unida a esta noite de entrega de prémios.
A única personalidade a levantar a voz foi Frances McDormand, pois claro. A mais do que prevista vencedora da estatueta de melhor atriz, por Três Cartazes, enalteceu todas as mulheres nomeadas, pedindo mesmo para se levantarem e, no final, despediu-se com duas palavras para a audiência: escrita de inclusão. Numa cerimónia em que as mulheres quase não vestiram de preto (antes pelo contrário), mas onde se usaram pins do movimento Time"s Up, este foi o momento em que a causa feminista teve protagonismo no pódio, para além do vídeo apresentado por Ashley Judd, Salma Hayek e Annabella Sciorra. Já pronunciar o nome do produtor excomungado Harvey Weinstein, só mesmo Kimmel o fez, com o humor elegante de sempre.
No que toca aos restantes atores e atriz nomeados, não se registou igualmente nenhum imprevisto: Gary Oldman, pelo papel de Churchill em A Hora Mais Negra, Sam Rockwell, como secundário em Três Cartazes e Allison Janney por Eu, Tonya, subiram ao palco com a naturalidade de quem só ficaria surpreendido se não ganhasse. Por sua vez, o inesperado aconteceu, felizmente, quando foi anunciado o nome de John Peele como vencedor do prémio de melhor argumento original, por Foge - tornou-se o primeiro afro-americano a ganhar nesta categoria.
Por este caso se vê o simbolismo da "diferença" que, aqui e ali, conseguiu vingar na distribuição dos Óscares. Repare-se no belo conjunto que formam vencedores como Coco, um animação de alma e cultura mexicanas, Uma Mulher Fantástica, do chileno Sebastián Lelio, sobre uma pessoa transgénero, e o próprio A Forma da Água, que retrata o amor entre uma mulher e uma criatura aquática. Todos estes filmes, para além de confirmarem a forte representação do México, são marca da especificidade que a linguagem universal do cinema deve veicular.
Foi ainda esse vigor que se testemunhou através das montagens de vídeo que foram pontuando esta 90ª cerimónia, com a memória de Hollywood condensada em instantes, planos e frases de grandes filmes. Por falar em grandes filmes, é pena que Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson, só tenha sido distinguido pelo guarda-roupa. Mas uma das falhas óbvias da Academia este ano passou pelo esquecimento da atriz oscarizada Dorothy Malone no vídeo do In Memoriam.