Uma mulher vítima de tortura na chefia dos Direitos Humanos na ONU
A próxima responsável por denunciar os abusos mais graves de direitos humanos em todo o mundo vai ser uma mulher que sabe o que é ter esses mesmos direitos violados. Michelle Bachelet, que foi detida e torturada durante a ditadura de Augusto Pinochet, assume a partir deste sábado o cargo de Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, sucedendo ao diplomata jordano Zeid Ra'ad Al-Hussein.
A socialista de 66 anos, que foi a primeira mulher presidente no Chile e já esteve à frente da ONU Mulheres, diz-se "honrada" por ir desempenhar este cargo. "Cumprirei com toda a minha força, energia e convicção com essa grande tarefa que procura dar dignidade e bem-estar a todas as pessoas", afirmou.
Verónica Michelle Bachelet Jeria nasceu a 29 de setembro de 1951, em Santiago do Chile. Estudou Medicina e militou na Juventude Socialista. O seu pai, um piloto da Força Aérea entretanto tornado general e próximo do presidente Salvador Allende, foi detido e acusado de traição após o golpe de Estado de Pinochet, a 11 de setembro de 1973. Morreria seis meses depois na prisão, após ser torturado.
A mulher e a filha seriam detidas pelos serviços secretos já em janeiro de 1975 e torturadas na Villa Grimaldi, um dos mais importantes centros de detenção da ditadura chilena. Bachelet nunca falou desse tempo. Libertadas no final desse mês, mãe e filha exilaram-se primeiro na Austrália e depois na Alemanha de Leste, onde Bachelet continuou a estudar Medicina.
Foi na Alemanha que conheceu Jorge Dávalos, um arquiteto chileno, com quem casou e com quem teve dois filhos: Sebastián e Francisca. Bachelet é ainda mãe de Sofía Catalina, fruto de outra relação. Tem já dois netos.
Bachelet regressou ao Chile em 1979, para concluir o curso, mas viu-se impedida por questões políticas de arranjar colocação no serviço público de saúde. Graças a uma bolsa de estudo, especializou-se em pediatria e saúde pública, acabando por trabalhar para uma ONG que apoiava as crianças que eram vítimas da ditadura.
Após a transição democrática, em 1990, entrou para o serviço público de saúde, mas começou também a interessar-se por estratégia militar e questões de defesa. Queria compreender a visão militar e as razões do golpe de Estado e da morte do pai. Em 2000, foi nomeada pelo então presidente Ricardo Lagos como Ministra da Saúde e dois anos depois seria a primeira mulher na América Latina a tornar-se ministra da Defesa.
Em 2005 faria também história, ao ser eleita presidente do Chile - foi a primeira (e até agora única) mulher a ocupar esse cargo. Apesar de acabar o primeiro mandato (2006 e 2010) com uma popularidade recorde, a Constituição chilena não permite a reeleição.
A socialista trocou então Santiago por Nova Iorque, sendo nomeada diretora executiva da recém-criada ONU Mulheres. Voltaria ao Chile em 2013, para ser eleita para um segundo mandato na presidência (que acabou em março). Neste período, aprovou uma série de reformas progressistas, entre os quais a despenalização do aborto em casos de risco de vida para a mulher, violação ou malformação do feto e os casamentos homossexuais.
"Neste ano em que celebramos o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não me ocorre uma escolha melhor" para assumir o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, explicando que este é um papel ao qual Bachelet se adapta perfeitamente.
António Guterres observou que Michelle Bachelet assumirá o cargo num momento difícil, num contexto de aumento do ódio e da desigualdade, de retrocesso no respeito das normas internacionais e com a liberdade de imprensa sob ameaça.
"Para navegar por estas correntes, necessitamos de uma defensora inequívoca de todos os direitos humanos: civis, políticos, económicos, sociais e culturais", afirmou Guterres.
Para Guterres, que quando se tornou secretário-geral da ONU prometeu nomear mais mulheres para cargos chave, essa figura é Bachelet, alguém que "viveu sob a escuridão de uma ditadura", que, como médica, conhece os desejos de saúde e outros direitos que a população tem e que está consciente das responsabilidades dos líderes nacionais e internacionais.