Uma máquina muito bem oleada

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Aquilo que mais salta à vista na produção da zarzuela Los diamantes de la coronaatualmente em cena no São Carlos é como tudo aquilo "corre sobre carris", quase "em piloto automático". Dir-se-ia quase uma vistosa produção da Broadway! Considerando que a mesma produção estreou em 2010 e foi reposta há poucos meses, sempre no Zarzuela de Madrid - o que, "traduzido", significa mais de trinta récitas! - e que o elenco se manteve de 2010 para cá (incluindo em Lisboa), não é de admirar.

A encenação de José Carlos Plaza é um dos pontos fortes desta produção, a começar pela conceção cénica: um locus horrendus no 1.º ato, um locus amoenus no 2.º ato e um palácio de conto de fadas (com muito trompe-l'oeil) no 3.º ato. Cenários a fazer lembrar os livros infantis com desenhos recortados em relevo, ainda mais valorizados por um desenho de luz muito cirúrgico, que acrescenta encantamento à magia pré-existente. Aos figurinos poderá apontar-se o facto de serem todos tão tradicionais, mas se considerarmos que esta produção quebrou um hiato de várias décadas na performance desta zarzuela, o tradicionalismo é compreensível à luz dessa falta de tradição interpretativa. As movimentações em palco procedem claramente da ópera cómica/buffa, com aqueles "achados" da ação parada (sempre em conjunção com as luzes) para apartes/comentários ou outras inserções. No palco do São Carlos, as movimentações do coro não tiveram a flexibilidade que se desejaria, mas a opção era utilizar um efetivo coral mais reduzido. Pelos cenários e luzes, parabéns a Francisco Leal!

O sexteto principal de cantores, todo ele "rodado" em 2010 e 2014, já quase faz a obra "de olhos fechados". Imprevisíveis, só, as vozes, e aqui - reportamo-nos à récita de estreia - destacaram-se claramente o tenor Carlos Muñiz (conde de Campomaior) e o mezzo Cristina Faus (Diana). O soprano Sonia de Munck (Catalina, a protagonista) acusou algum desgaste vocal e os agudos estiveram falíveis; o baixo-barítono Francisco Santiago (Rebolledo) conquistou-nos enquanto ator, mas ao seu canto faltou projecção, squillo. Carlos Cosías (marquês de Sandoval) é um tenor com boa escola e técnica, mas a voz é pequena e com poucas cores. Por fim, o barítono Gerardo Bullon esteve apenas regular e, como ator, é talvez o menos dotado dos seis.

À frente da Sinfónica Portuguesa, Rui Pinheiro cuidou antes de mais que a Sinfónica Portuguesa mantivesse a compostura, o que significa que houve comedimento a mais do lado orquestral e só muito ocasionais rasgos, o que não se coaduna com uma récita de zarzuela. Mas, com ligeiras exceções, o seu propósito primeiro "vingou".

E o que dizer da mais "portuguesa" das zarzuelas (a ação passa-se em Portugal e o nome do nosso país é proferido numerosas vezes)? Primeiramente que é toda ela italianizante: de facto, tirando o Bolero do 2.º ato, algum melodismo de feição andaluz e uns "requebros" entre-frase ou em fim de frase, pouco mais há que acuse "espanholismo" nesta obra. O modo dela é todo devedor da rica tradição buffa italiana que vinha já desde o último terço do século XVIII, com alguns apports franceses (certas linhas vocais, tratamento coral).

E depois, Portugal funciona ali sobretudo como uma "fachada" para aquilo que, com algum exagero, poderíamos chamar de agenda oculta de Barbieri/Camprodón. Se atentarmos na personagem de Catalina, percebemos que ela tem muitos pontos comuns com Isabel II de Espanha (1830-1904), rainha de 1843 a 1868 (terminou com a revolução dita La Gloriosa) e cujo reinado foi assolado e assombrado pelas Guerras Carlistas, de tal modo que passou à história apodada de "rainha dos tristes destinos". Era ela, portanto, a rainha ao tempo da estreia da obra (setembro de 1854), sendo que, menos de três meses antes da estreia, se dera a Vicalvarada, uma das numerosas revoltas que se produziram na época, sendo que essa deu início ao chamado "biénio progressista". Talvez dessa esperança progressista derive, afinal, o corolário otimista da obra.

Los diamantes de la corona tem récitas dia 25, às 16.00 e dias 27 e 29, às 20.00

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