Uma maioria silenciosa e várias minorias aos berros
Marcelo Caetano chamou Spínola, no 25 de Abril, para o poder não cair na rua. Três anos mais tarde, quando a AR aprovou a Lei da Reforma Agrária, conhecida pelo nome do ministro de Agricultura de Mário Soares, os comunistas pintaram nas paredes: "[António] Barreto, rua!" A rua, nos anos da revolução, serviu para tudo, sendo o local onde se proclamava o slogan da extrema-esquerda do poder popular ou o nome de um semanário de extrema-direita (A Rua). \t
O 1º de Maio de 1974, no gigantismo das manifestações em todo o País, foi quase o plebiscito ao 25 de Abril. Mas se nessa comemoração do Dia do Trabalhador parecia que um povo inteiro estava unido pelo derrube do fascismo e pela conquista da liberdade, os meses seguintes começavam a revelar divergências políticas em que a rua era o palco principal, com desfiles, greves, ocupações, protestos, bloqueios, reivindicações, barricadas.
Logo em Maio, militantes do MRPP impediam o embarque de mais tropas para África e, assim, acabariam por enfraquecer a posição negocial nos acordos de paz com os movimentos de libertação das colónias. Mais tarde, após as pontes aéreas que encheram o aeroporto com famílias inteiras de desalojados, os retornados haviam de encher as ruas protestando contra a falta de condições.
Em 1974 e 1975 foram ocupadas casas devolutas e palacetes de donos que fugiam da revolução, fábricas e empresas de onde se saneavam os patrões, herdades para fazer a reforma agrária.
Numa época em que até os pequenos partidos conseguiam mobilizar multidões, em que os comícios estavam apinhados de militantes, a intolerância ideológica levava a extrema-esquerda a cercar o Palácio de Cristal, no Porto, onde decorria, em Janeiro de 1975, o I Congresso do CDS; e a direita, a partir de Julho, a incentivar, no Centro, Norte e Ilhas, o assalto, destruição e incêndio de sedes dos partidos à esquerda do PS.
A convocatória da maioria silenciosa para ir apoiar as teses do general Spínola a 28 de Setembro de 1974 e as barricadas populares montadas nas estradas para evitar esse cognominado golpe da reacção levaram à resignação do então Presidente da República, que seria substituído por Costa Gomes.
A fractura da sociedade iria acentuar-se no ano seguinte, quando as primeiras eleições deram a vitória ao PS, seguido pelo (então) PPD e deixando o PCP em terceiro. A partir daí, a questão que se discutia era a da legitimidade nas urnas e a da legitimidade da rua: à manifestação a pedir a dissolução da Assembleia Constituinte, a 12 de Junho, respondia o PS (e a direita) com o comício na Fonte Luminosa, a 19 de Junho; a 27 de Agosto havia uma manifestação de apoio a Vasco Gonçalves e ao seu V Governo Provisório, apoiado pelo PCP e pela extrema-esquerda; a 9 de Novembro havia outra de apoio ao VI Governo, liderado por Pinheiro de Azevedo e suportado por PSD e PSD - com bombas de fumo e o improviso: "o povo é sereno; ninguém arreda pé".
Tempos de excepção, em que para alguns parecia admissível os trabalhadores da construção civil cercarem a Assembleia Constituinte e sitiarem o VI Governo Provisório de Pinheiro de Azevedo - com o primeiro-ministro a decidir que o executivo entrava em... greve. E outros acontecimentos hoje inimagináveis, como a ocupação do jornal República pelos trabalhadores gráficos contra a redacção; o julgamento de José Diogo, camponês alentejano que assassinou um latifundiário e um tribunal popular ilibou e aplaudiu; o assalto à embaixada de Espanha.
A normalização do regime, com o golpe anti-esquerdista do 25 de Novembro, a eleição do Presidente da República (Eanes) e a formação do primeiro governo saído de eleições (liderado por Soares), relativizou a importância da rua.
Além das concentrações puramente partidárias e dos protestos do movimento sindical (nomeadamente através da CGTP, a central mais próxima da esquerda que, desde 1976, nunca mais voltou ao poder), as outras manifestações tornaram-se mais espaçadas. As lutas laborais tiveram greves gerais a partir de 1982, contra o governo da AD (PSD-CDS-PPM) - e, dias depois, o confronto entre apoiantes das duas centrais, que queriam ambas comemorar o 1º de Maio na mesma praça do Porto, obrigaram a uma brutal intervenção das forças de segurança.
"Temos fome! Não recebemos salários", eram faixas das manifestações dos anos seguintes, tempo do Bloco Central (PS-PSD), com cortes de estradas e vias férreas, ocupação de empresas para não encerrarem, cargas policiais.
Na década de Cavaco, entre outras contestações, houve a greve geral de 1988, a manifestação sindical da PSP reprimida pelos colegas do Corpo de Intervenção, que também desobstruíram as estradas cortadas pelos agricultores liderados por Júlio Sebastião, o homem das barbas do Bombarral. Cavaco transmitia a imagem de não negociar sob pressão. Já Sócrates recuaria, por exemplo, na avaliação dos professores, após a grande manifestação da classe.
Em paralelo, durante o cavaquismo, surgia uma contestação estranha aos sindicatos, mas mobilizada e firme, protagonizada pelos estudantes. Os alunos do secundário, em 1992, contestam a PGA (Prova Geral de Acesso) e os universitários, no ano seguinte, o pagamento das propinas.
Houve outras causas que encheram a rua. A elevação de Vizela a concelho, a legalização do aborto, a co-incineração, o buzinão e o bloqueio da ponte 25 de Abril (em que Cavaco não cedeu e Soares defendeu o "direito à indignação"), o cordão humano por Timor, a manifestação contra a guerra do Iraque, até os católicos em protesto por causa do filme de Scorsese A Última Tentação de Cristo.
E do meio da rua surgiram gestos ou palavras que podem ter mudado o rumo dos acontecimentos. A agressão à caravana de Mário Soares, na Marinha Grande, foi o ponto de viragem nas Presidenciais de 85. E quando Sampaio ouviu um automobilista dizer-lhe "isto está impossível, vê se fazes qualquer coisa", demitiu Santana - mas o poder não caiu na rua.