Uma leitura da invasão de Portugal, de Goa e da Ucrânia

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Antes de iniciar a abordagem do tema, creio ser razoável colocar uma questão prévia: será admissível comparar, três invasões, cronologicamente tão distantes, com protagonistas tão diferentes e contextos igualmente dissemelhantes, como a de Portugal, em 1384, a de Goa, em 1961, e a da Ucrânia, em 2022?

Independentemente de existir ou não uma resposta satisfatória, vou tomar a liberdade de fazê-lo, de uma forma sintética, consciente dos riscos que posso vir a correr.

Em primeiro lugar, as fontes de estudo para cada uma delas são diferentes: se pude investigar a invasão de Portugal, através das crónicas, dos milhares de documentos analisados e da extensíssima bibliografia consultada, quanto à invasão de Goa tenho a vantagem de poder exprimir-me enquanto testemunha presencial e em relação à Ucrânia não faltam imagens televisivas nem informações especializadas e artigos de opinião.

Como o tema é vastíssimo, vou cingir-me, sobretudo, às movimentações das forças invasoras e às reacções da respectiva população.

Quando o rei D. João I de Castela invadiu Portugal, alegando ser legítimo herdeiro da coroa portuguesa, à luz da sua interpretação do contrato de casamento de Salvaterra de Magos, fê-lo entrando pela cidade da Guarda, com apenas vinte e cinco a trinta homens, tendo sido recebido em procissão pelo bispo da Guarda, D. Afonso Correia.

Se naquela cidade fronteiriça importantes personagens prestaram homenagem ao rei castelhano, o alcaide, Álvaro Gil Cabral, não lhe entregou o castelo, mantendo-se imparcial.

Incapaz de dominar a revolução iniciada em Lisboa, em 6 de Dezembro de 1383, após a morte do conde Andeiro, a rainha D. Leonor, havendo fugido para Alenquer e depois para Santarém, convida o rei de Castela a entrar em Portugal para ajudá-la a dominar aquilo a que ela chamava de rebelião, encabeçada por D. João, Mestre de Avis, numa altura em que o seu genro, por livre iniciativa, já se encontrava dentro do território português.

Obcecada pela ideia de dominar os insurrectos e concretizar os seus desejos de vingança, no dia 13 de Janeiro de 1384, a mulher do falecido rei D. Fernando, por vontade pessoal, abdica do governo e do regimento a favor do rei castelhano.

No seguimento do processo revolucionário, apesar da maior parte de Portugal ter apoiado o invasor, sobretudo o norte do país e a alta nobreza, o rei castelhano, estando a chefiar o cerco da cidade de Lisboa, sabia que só poderia ser senhor de Portugal se conseguisse a rendição da cidade, que teimosamente resistia há sete meses, apesar de insuperáveis dificuldades que enfrentava.

Cansado da intransigência de Salazar, que recusava negociar pacificamente o futuro de Goa, Nehru, que considerava esse território como parte integrante da União Indiana, ordena a sua invasão por terra, mar e ar, sabendo que embora Portugal pertencesse a NATO, ela não interviria por Goa estar fora da sua área, porquanto o artigo 5.º do seu tratado rezava assim: "As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas".

Tendo a invasão sido iniciada na manhã do dia 18 de Dezembro de 1961, em força e a alta velocidade, não deixou outra alternativa ao seu governador-geral, general Manuel Vassalo e Silva, se não a sua rendição incondicional, que foi assinada nos princípios da tarde do dia seguinte, pondo assim termo ao domínio português exercido desde 25 de Novembro de 1510.

Perante a rapidez da invasão, as forças defensivas, em descomunal inferioridade, quer numérica, quer em qualidade do material de guerra, viram-se obrigadas a recuar oferecendo escassa resistência.

A população, maioritariamente de origem goesa, com uma pequena percentagem de metropolitanos e seus descendentes, assistiu ao avanço das tropas atacantes, genericamente, sem participação activa.

Se os opositores à invasão não tiveram a coragem de manifestar pública e abertamente o seu descontentamento, durante o avanço das tropas atacantes, todavia vi uma parte significativa da população receber os invasores como autênticos libertadores.

Em 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia lançou uma invasão em larga escala contra a Ucrânia chamando-lhe, eufemisticamente, de "operação militar especial". Questionando o direito de sua existência e alegando pretender desmilitarizá-la e desnazificá-la, acusa os seus governantes de cometerem genocídio contra os seus cidadãos que falam russo.

É sabido que desde tempos recuados, os habitantes do actual território ucraniano e os da Rússia têm muito de história comum e igualmente de história que os separa.

No século IX, Kiev, a actual capital ucraniana, foi o centro do primeiro Estado eslavo, cujo povo se autodenominava de "Rus". Moscovo só surgiria no século XII.

Pois bem, depois de aquele imenso espaço geográfico ter sido o corredor de tantas invasões, povoada por tantos povos e sujeito a tantas soberanias, com avanços e recuos fronteiriços ao longo dos séculos, definir a identidade ucraniana como tendo uma unidade nacional una e coesa afigurasse-me uma tarefa deveras difícil.

No entanto, as imagens televisivas que nos chegam e as reportagens feitas pelos jornalistas parecem indicar que existe uma forte coesão entre os defensores e uma enorme resistência contra o invasor.

Sabemos que neste conflito, como em qualquer outro, existe também uma guerra de informação e contra-informação mas, até ao presente, ainda não vi imagens de ucranianos a saudar as tropas invasoras embora, seguramente, deva ter sucedido, como aconteceu na cidade da Guarda e em Goa.

A invasão do rei D. João I de Castela fracassou, porque entre os combatentes que cercavam a cidade de Lisboa, por terra e pelo mar, alguns milhares foram atacados pela peste e pereceram. Quando a rainha D. Beatriz, sua mulher, manifestou também sinais de estar contaminada, não lhe restou outra alternativa a não ser a de abandonar o cerco e regressar ao seu país.

De nada lhe serviu invadir Portugal, no ano seguinte, com efectivos ainda mais poderosos, porque sofreu uma humilhante derrota na Batalha de Aljubarrota.

Todavia, nessa longa disputa, o mais importante não foi a resiliência dos portugueses perante o cerco castelhano e a firmeza de D. João, Mestre de Avis - que, apesar de saber que estava no limite das capacidades defensivas não se rendeu ao invasor -, nem a genialidade de Nuno Álvares Pereira no comando da Batalha de Aljubarrota, mas a afirmação e a promoção do sentimento de nacionalidade que foi fortemente dinamizado pelos defensores, deixando bem claro que os partidários do Mestre de Avis defendiam a independência de Portugal contra aqueles que pretendiam entregar-se aos castelhanos e fundir as duas coroas.

Esse sentimento prevalecente do povo português, apesar de ter sofrido um período de dominação filipina, de 1580 a 1640, continua a persistir contra todas as adversidades, fazendo de Portugal uma das nações mais velhas da Europa e permitindo que Portugal e Espanha vivam harmoniosamente em paz e sossego.

No que respeita a Goa, pouco mais de sessenta anos volvidos após a sua invasão, as feridas ainda sobrantes continuam a ser cicatrizadas, e os Estados soberanos de Portugal e da Índia, esquecendo as desavenças do passado, mantêm, presentemente, excelentes relações bilaterais.

Contudo, mesmo que o Estado autónomo de Goa, um dia venha a ser completamente independente, Goa jamais tornará a ser portuguesa, porque as longas marés da história lavam os sentimentos e absorvem as emoções impedindo o regresso ao passado.

Das três invasões, a castelhana saiu derrotada, a indiana vitoriosa e a russa, por enquanto ninguém sabe qual será o seu desfecho mas, por mais poderoso que seja o exército invasor, a Ucrânia será sempre aquilo que o seu povo quiser.

Todavia, neste momento tão dramático, o imperioso não é saber quem será o vencedor, porque perdem ambos e a humanidade com eles, mas acabar urgentemente com a guerra e fazer todos os possíveis para que russos e ucranianos vivam em paz e sossego, assim como Portugal fez com a Índia e com a Espanha, apesar de ter participado nas guerras e invasões no passado.

Historiador

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