Uma instituição

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Politicamente incontornável, mediaticamente discreto, o lançamento do novo livro de Maria João Avillez (As Sete Estações da Democracia, edições D. Quixote) na Fundação Gulbenkian, a passada quarta-feira, reuniu rostos de todo o regime. Tão ou mais relevante do que os presentes, foi o dito por quem lá falou. A autora, o apresentador da obra, o seu editor e, no fim, o Presidente da República. Na sala, estiveram Aníbal e Maria Cavaco Silva, Passos Coelho, Paulo Portas, Santana Lopes, Francisco Assis, Sérgio Sousa Pinto, José Miguel Júdice, José Luís Arnaut, Carlos Moedas, Fernando Medina, Ferreira Leite e, como sempre discretíssimo, Francisco Sá Carneiro II. O ancião advogado e conselheiro de Estado de Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, marcou também presença. O académico Carlos Gaspar prefaciou a publicação.

Não será exagero, portanto, referir todo o regime, ainda que transportado por pesos distintos. Não havia uma só cadeira vazia. Avillez leu uma intervenção escrita para ser lida, e bem lida, e Marcelo improvisou, mas com memória. Conhecem-se há décadas, trabalharam juntos e mantêm amizades comuns. Para um observador atento, o momento foi simbólico, não tanto pela história que partilham ou com que conviveram, mas pelos tempos de hoje. Maria João Avillez foi talvez a maior crítica do primeiro mandato do atual Presidente. Fê-lo com uma assertividade - e uma franqueza - pública que poucos ousaram. Fê-lo, ainda por cima, com a certeza de uma contemporânea que com ele privou antes de o interpretar. E fê-lo, acima de tudo, com a autoridade de alguém que biografou Soares e Sá Carneiro. No livro, na entrevista a Portas sobre Marcelo em que os dois quase se confundem, não como faces da mesma moeda, mas como reflexos do mesmo espelho, as perguntas de Avillez chegam a ser mais severas do que as respostas do próprio.

As palavras de Marcelo, tendo isso em conta, representaram todo um gesto político. Perante o seu antecessor e um punhado de eventuais sucessores, o Presidente da República prestou homenagem à carreira de uma jornalista que assinou as conversas definitivas com os dois homens que, hoje, mais o definem a ele: Sá Carneiro, que fundou o seu partido, e Mário Soares, que inaugurou o exercício da presidência aberta, popular, que Marcelo hoje exerce. Esta vénia do chefe de Estado, como que corporizando o agradecimento da democracia à mais constante das suas interlocutoras, foi, mais do que merecido, uma prova de maturidade do regime. Chamando-lhe III ou II República, como preferia Pulido Valente, o facto de uma mãe de família, conservadora, pensadora em liberdade, ser consagrada como cronista da democracia é um tanto comovente. No evento, Marcelo limitou-se a verbalizar o que a sala - os seus, o seu trabalho, a sua vida ‒ - já evidenciava. Avillez é uma instituição.

Aos seus pares, ofereceu um exemplo de como é possível preservar objetividade e convicção. Aos seus leitores, brindou-os com um livro em que delfins homenageiam mestres, antigos adversários louvam velhos amigos e espectadores que recusaram ser protagonistas avaliam protagonistas que rejeitaram não o ser. Em todos, reside o respeito da admiração, sem cair na idolatria. Em todos, paira a dúvida sobre cada elogio - será ao visado ou a quem o profere? - e em torno de cada reparo: terá mais a ver com a estação analisada ou com o meteorologista convidado?

As sete estações de Maria João Avillez, concebidas no primeiro ano desta pandemia, trazem alguma claridade a este novo inverno - o sazonal e, como vem advertindo, o do regime.

Colunista

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