Uma história de Amor

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Ao escrever A Cabra, ou quem é Sílvia?, Edward Albee estava convencido de que seria proscrito do teatro americano. «O teatro deve mudar as nossas percepções ou então é apenas decorativo», justificou. O dramaturgo desafiava ostensivamente a moral conservadora dos americanos e toda a moral judaico-cristã ocidental. «Esta é uma peça sobre os limites da nossa tolerância, sobre aquilo que nos permitimos pensar», afirmou sobre A Cabra, a peça com que em 2001 regressou à Broadway depois de mais de 20 anos de ausência. Os críticos entraram em polémica - alguns chamaram-lhe obsceno - mas, apesar disso, o espectáculo foi um êxito de público e acabou por receber inúmeros prémios, incluindo o Tony para melhor peça. O elenco original, com Mercedes Ruhel e Bill Pullman, foi substituído um ano depois por Sally Field e Bill Irwin; outras companhias pediram os direitos para a produção; e Albee foi mais uma vez engolido pelo establishment.

Álvaro Correia viu A Cabra em Nova Iorque e, à primeira oportunidade, decidiu encená-la no palco do Teatro da Comuna, em Lisboa. Em cena, um casal como tantos outros. Martin (o actor Carlos Paulo) é um arquitecto de sucesso que tem um casamento feliz com Stevie (Cucha Carvalheiro) e um filho adolescente homossexual (Victor Soares) - mas sem dramas, estamos perante um família de intelectuais liberais, onde não há assuntos tabu. O tom inicial é o de uma comédia doméstica, ao estilo de Noël Coward, com uma paródia às habituais crises conjugais e sofisticados jogos de palavras. Eles amam-se de verdade. São felizes mesmo. Ironicamente, nesta primeira cena, Martin chega a confessar que tem uma amante que é uma cabra, a mulher ri-se e faz piadas com o assunto. Até perceber que não se trata de uma anedota. Mais uma vez, Albee desmascara a ideia de «lar feliz». A felicidade doméstica, perfeita, a suposta normalidade esconde desejos inconfessados, frustrações antigas, impulsos que não se quer mais dominar. Como diz Stevie, «a impressão de que tudo corre bem é um sinal de que algo corre mal». No dia em que faz 50 anos, numa conversa com o seu melhor amigo (João Tempera), Martin sai do armário.

Tragédia. A partir daí, a peça começa a ter contornos cada vez mais negros. A discussão do casal remete-nos, obviamente, para Quem tem medo de Virgina Woolf?, só que aqui estão todos sóbrios. Só que aqui o realismo é interrompido pelo absurdo. «Estamos preparados para lidar com infidelidades, com traições. Mesmo sendo coisas que nos magoam, estão dentro dos nossos códigos», explica Álvaro Correia. «Mas como reagimos quando alguém se desvia da normalidade? Quais são os limites criados pela sociedade?» Martin, que nunca tinha traído a mulher, está agora apaixonado. Por uma cabra. «O que é verdadeiramente perturbador», acrescenta o encenador, «é que não se trata de uma perversão sexual. Ele está de facto apaixonado pela cabra e fala dela como se fosse uma pessoa.» Na cena central - o confronto entre marido e mulher - Martin esforça-se por explicar que esta é uma relação de afecto como qualquer outra. Ela tem nome, ela é Sílvia.

Na sua edição original, a peça tem como subtítulo «Notas em torno de uma definição de tragédia», recordando que o teatro ocidental se funda numa série de peças que trata o canibalismo, o incesto ou o parricídio. «Lembrei-me muito das Bacantes e das festas dionisíacas», conta Álvaro Correia. O amor de Martin por Sílvia é apresentado como uma inevitabilidade, algo a que ele próprio não consegue escapar e que ultrapassa o seu entendimento. Quando fala pela primeira vez do assunto, Martin toma consciência de que algo está errado mas ainda não se sente culpado. Não adivinha as consequências dos seus actos. Só que a partir daí nada voltará a ser o mesmo e as relações vão degradar-se como não poderia ter imaginado. «O percurso de Martin é de um estado quase animal, de desligamento da realidade, a uma progressiva tomada de consciência», explica o encenador. «A mulher tem o percurso contrário. Caminha para a irracionalidade, ao ponto de cometer um acto de crueldade, de matar.» Num final em tons gore, Martin pede desculpa três vezes.

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