"Uma estrela Michelin mexe connosco"

Almoço com João Rodrigues
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Um encontro com um chef tem destas coisas: não se almoça verdadeiramente. Prova-se, inspira-se, saboreia-se. Todos os sentidos absorvem alguma coisa em cada uma das porções dos amuse-bouches preparados no momento e capazes de se acomodar numa colher de sopa - que nos são revelados num contexto muito mais cuidado e complexo, a preparar-nos para os sabores que escondem. E depois de uma pequena amostra do que o chef prepara diariamente para quem ali reserva mesa (só ao jantar), sente-se que se cresceu, que se aprendeu, que se criou uma intimidade profunda com quem nos preparou a comida. E fica-se com vontade de voltar para ter a experiência completa.

Não nos sentámos à mesa nem partilhámos uma refeição. Já passava da hora de almoço e ainda era cedo para lanches quando atravessei a sala do Feitoria, que abriria para o jantar. João e a sua equipa já comeram, numa pausa da preparação e supervisão dos ingredientes, que não têm descanso desde manhã. A rotina é repetida, "fazemos tudo desde o zero, todos os dias". E é na cozinha que tenho a experiência da criatividade e qualidade gastronómica que garantiu pelo sexto ano consecutivo um lugar nas páginas do exclusivo Guia Michelin - as estrelas dos últimos três anos já com a assinatura de João Rodrigues como chef executivo. Que melhor maneira há de conhecer um chef senão pela comida, na sua própria cozinha?

Aos 39 anos, João leva sempre nos itinerários das viagens de férias uma missão: conhecer a comida que se serve nos restaurantes, o que se vai fazendo por aí. Isso ajuda-o a enriquecer a experiência de 18 anos, em que trabalhou com chefs como Sebastien Grospelier, Stephane Hestin e Fausto Airoldi. Da altura em que entrou pela primeira vez a sério numa cozinha, diz que conserva a paixão. "Mas houve uma grande perda de inocência - acontece a todos. Nessa altura, eu via o aspeto romântico disto, a ideia de ir de manha às compras, depois vir cozinhar, era aquele cozinheiro que usava um barrete e fazia as coisas... Não fazia ideia de que uma brigada podia ter 30 pessoas! Só na cozinha da escola é que comecei a deparar-me com aquela hierarquia militar."

A experiência veio a revelar-se bem diferente do que imaginara quando a irmã, inspirada pelas experiências que desde miúdo fazia em casa - "coisas banais, bifinhos com cogumelos, feijoada... e sujava tudo... ainda o faço" -, lhe falou numa formação naquela área. Na altura, João tinha tirado um ano sabático para pensar a sério no que queria - a parte formal da Biologia Marinha, para a qual se inclinara por acreditar que poderia trabalhar em contacto com a natureza, começava a impor-se e a criar uma incómoda certeza de que não era este o seu caminho. Ainda vacilou para o lado da música - "nessa altura tinha uma banda, tocava guitarra e baixo e andava fascinado; aquela parte criativa é que mexia comigo" - mas a cozinha, que também tinha esta vertente, acabou por ganhar. Selou a decisão depois de um estágio no Ritz (já tinha passado pelo Sheraton).

Inspeciona o primeiro aperitivo que me revela com instruções de uso: "É para comer de uma vez, à mão." O insuspeito cubo vermelho é melão impregnado com hibisco e lima ralada. "É o início da refeição porque é um limpa palato, tem alguma doçura e acidez, uma textura específica..." Observa o efeito com uma expressão que só se lhe vê quando põe a comida à prova, um involuntário sorriso de criança nos olhos, expectativa e entusiasmo ao ver-me surpreendida por o sabor poder mesmo descobrir-se por camadas. Demoro-me muito mais do que precisaria para senti-las todas.

Ele aproveita para dar uma orientação rápida à equipa. O método, aprendeu-o nos extremos: do "lado irreverente e rock"n"roll" da Bica do Sapato de Airoldi, onde durante três anos ajudou a servir 60 almoços e 130 jantares por dia, ao método de Grospelier (chef com duas estrelas Michelin), com quem preparava umas mais contidas mas bem mais "rigorosas e exigentes" 20 refeições, passando pelo experimentalismo do Pragma (Casino Lisboa), de novo sob a batuta de Airoldi. Até chegar ao Altis Belém, onde se estreou em 2009 com Vítor Cordeiro, passando há três anos a chef executivo.

"Quando me perguntam o que é para mim um restaurante, é isto, é o produto que servimos" - mostra-me imagens no telemóvel: percebes gordos como polegares, amêijoas com o diâmetro do topo de latas de bebidas, peixe ainda a mexer as guelras. "Quando me chega ainda vem assim." Não vai buscá-lo à lota, vem de um fornecedor de Peniche com quem criou uma relação de confiança - "temos de conhecer as pessoas, é preciso ter contacto direto com quem produz e apanha os produtos. O grande trabalho de fundo é esse, é anular intermediários e criar uma relação que também é comercial".

Cada um dos sete elementos hoje a serviço (são dez no total, rodam conforme as folgas) vão cumprindo com absoluta segurança as tarefas que lhes foram designadas, sem abrandar, sem vacilar. Vão chegando ingredientes frescos, do lume libertam-se cheiros incríveis (sautées, bases, condimentos, especiarias). Ninguém se atropela, não há gritos nem conversas paralelas ou olhares de soslaio. Nada do que se vê em filmes e reality shows. Aqui há uma missão a cumprir e cada um sabe que papel lhe cabe: a harmonia é total. Mas os olhos do chef nunca se afastam muito.

Retoma a conversa para explicar porque é preciso construir uma relação comercial com fornecedores e produtores, a atenção dividida entre mim e a coreografia em pano de fundo. "São pessoas com negócios pequenos e é preciso ter em conta a sua sustentabilidade", garantir que a logística se cumpre de forma a que tirem disto alguma compensação. É por isso que não se importa de partilhá-los. "É a maneira de trazer para aqui estas pessoas, de garantir que não gastam todo o dinheiro que fazem comigo numa vinda a Lisboa: partilhá-los com outros chefs", profissionais de restaurantes com estrelas.

O produto é caro. Um lagostim da costa de Peniche custa-lhe cerca de 70 euros o quilo. "Quando usado num prato, temos de vender a que preço?" Diz que muitos não entendem a dificuldade que é ter produtos desta frescura. "Não sabem o que estão a pagar." Nas carnes, a coisa ainda se complica: "Podemos estar a comer um cruzamento de raças, uma carne injetada ou criada à base de ração para ter mais gordura e nem sabemos." Mostra-me as cores brilhantes de uma perdiz legítima para explicar que há diferenças entre um animal de aviário e o que anda à solta na natureza. "Não digo que não é bom, é diferente; mas se fizermos uma prova cega ninguém aqui consegue distinguir uma carne mirandesa de uma arouquesa. Nem eu. É por isso que é tão importante sabermos com quem estamos a lidar."

Hora da segunda prova: uma pétala pálida no mar de sementes que enchem uma taça de pedra. Nada do que parece: "Salmonete marinado, abacate, tomate e lima-caviar." Explosão de sabor, o cérebro a tentar identificar cada milímetro enquanto João Rodrigues desvenda o citrino australiano "que tem mesmo esse aspeto de caviar". Mostra-mo em estado bruto, parece um picle de casca rugosa, sementes brilhantes, redondas por dentro, tal e qual ovas. Vêm do Alentejo, onde um casal de reformados da alta finança (ele francês, ela canadiana) se instalou e cultiva espécies como esta, a mão de buda e o yuzu, que João utiliza na cozinha. Mostra-me como se lhes sente o cheiro, raspando a casca com a unha "para soltar os óleos".

Dá-lhe prazer explicar o que faz e é evidente que gosta do trabalho que desenvolve - que engloba todo o hotel, do pequeno-almoço à cafetaria, bar, room service e restaurantes - mesmo que pouco tempo lhe deixe para realmente cozinhar. "O chef está a controlar, ajuda aqui e ali, participa na mise en place, mas não está a fazer a bancada." Essa parte de maior prazer, "terapêutica", chama-lhe, cumpre-a ao domingo, em casa: "É a altura em que eu cozinho. Vou às compras, mexo nas coisas..." Gosta de dar o que faz a provar aos filhos (dois rapazes e uma rapariga, de 6, 5 e 2 anos), apresentá-los a novos cheiros e sabores.

A mim, chega-me um novo aperitivo, uma casca negra a esconder-se entre pedras pretas, rebento verde a destacá-la. "Começámos por lhe chamar pedras vivas, mas houve um momento engraçado: alguém olhou e disse que aquilo parecia um bugalho; então mudámos o nome para alhos e bugalhos - é uma tempura de batata com maionese de alho fermentada."

Explica que lhe cabe supervisionar todo o pessoal ligado à comida - "é o mais difícil num negócio destes, mas as pessoas certas vão aparecendo e é preciso confiar. Tudo na alimentação é um ato de confiança. Nós sentamo-nos para comer e nem pensamos". Por isso, João dá espaço a todos para opiniões e sugestões. "No fim, decido."

Pergunto-lhe se há uma carga associada à estrela Michelin, que voltou a renovar no mês passado, uma ânsia de não poder falhar. Diz que esse não é o seu foco. "Mas não posso ser hipócrita, é claro que mexe connosco. Primeiro, porque há todo um negócio que depende disso, sobretudo depois de se ter a estrela. E depois pelo barulho que vem de fora... ou nos fechamos em casa ou não lhe conseguimos ser indiferentes." Esse nervosismo, porém, não é exclusivo da pertença ao guia. "Se estiver lá fora um chef que admiro também fico nervoso. Há coisas mais importantes, mas claro que há alturas em que isso mexe connosco, seja qual for o tipo de reconhecimento. Mas se o foco for fazer sempre mais e melhor, tentar encontrar um caminho nosso, naturalmente as coisas acontecem."

Por arrasto do reconhecimento, vêm os convites. João Rodrigues tem muitos, mas nem hesita quando lhe pergunto se aceitaria ir para fora: "Agora não! Tinha de ser uma coisa inacreditável, porque seria levar cinco pessoas." Inclui a mulher, que conheceu em 2007 no concurso de cozinheiro do ano (é gestora de eventos), e os filhos. Ir sozinho nem sequer lhe passa pela cabeça. É um homem de família - ele prefere descrever-se como "uma pessoa de convicções" - e acredita que "para os ver uma vez por mês não fazia sentido ter família". É também por uma questão de "equilíbrio" - eu diria exigência - que rejeita convites para atividades pontuais que o obrigariam a dispersar a atenção. "Se aceitasse, não teria tempo para fazer nenhuma delas bem, nem para aquilo que é o meu equilíbrio. Prefiro dedicar-me de corpo e alma a uma coisa."

Interrompe a passagem de um dos membros da equipa, que continua azafamada a preparar os dez pratos para cada um dos 35 jantares que vão começar a servir daí a cinco horas. Pede-lhe que dê um salto à pastelaria, em baixo, e diga que lhe preparem a pré-sobremesa - doces não são o seu prato forte, mas nem por isso os descura, como em breve confirmarei. Para já, serve-me o último aperitivo - "é uma tarte de cogumelos e tutano e por cima tem uma lâmina de carne arouquesa crua". Os sabores (nunca há só um) enchem a boca. É do mais rico que alguma vez provei.

Para João, é impossível eleger um prato como uma criação extraordinária. Está constantemente a tentar superar-se, ir mais longe - não será essa a essência de um chef Michelin? O máximo que consegue é identificar aquele que "ajudou a marcar a diferença": o carabineiro do Algarve. "Tive um processo de aprendizagem e quando fiz o meu caminho a minha atenção estava toda virada para a parte técnica, esquecendo o concetual. A criatividade era em função da técnica: o que é que posso pôr mais aqui. E quando se pensa assim complica-se, porque queremos mostrar." A mudança veio com a chegada de uma prensa antiga ao Feitoria, que João leva à mesa dos clientes e, tendo por base o que não aproveita do carabineiro, fabrica um molho que é ali derramado no momento. "É uma coisa relativamente simples mas que tinha muita complexidade, porque o ritual é feito na sala, à frente das pessoas, há uma história... E depois é a ideia de que sabe a grelhado sem o estar, o gosto vem do molho." É este o prato que João aceita dizer que "roça a genialidade", por a "intervenção ser tão pouca e ao mesmo tempo tão profunda que nos leva a novos caminhos".

A pré-sobremesa está ali à minha frente: uma árvore coberta de neve, à exceção das folhas, merengues a nadar em azoto líquido fumegante. A serra da Estrela tem preceito: primeiro põe-se na boca o merengue de carqueja, expele-se o fumo - "passa logo a ideia de inverno, frio, frescura" -; depois tira--se uma folha dourada e saboreia--se o que é na verdade, coscorão com gel de yuzu. Nada é simples e nada é deixado ao acaso. Uma coisa é certa, neste percurso João sabe que para ter os melhores produtos tem de haver flutuações. "Não podemos ter uma coisa sempre, porque estamos a falar de natureza." A carta tem de ser adaptada a esses caprichos. Nada para que um chef não esteja preparado: "Todos os chefs têm a sua base , são 10 ou 15 elementos, confeções-base que se ligam com todo o tipo de ingredientes para transformar em coisas novas. Por exemplo, nós temos um caldo de carne que leva três dias a fazer, à base de língua, joelho, ossos, tutano, muita gelatina e legumes. E a partir daí podemos fazer todos os sabores: perdiz, veado, cabrito... Muda todos os dias com o produto fresco inserido na base."

A sobremesa de beterraba (em gelado e lâminas) e framboesas declara o fim do meu encontro com João Rodrigues, que começa a ficar apertado de tempo. Tem de supervisionar os jantares. Entretanto há de preparar novas ementas temáticas - "as de Natal, Ano Novo e até do Dia de São Valentim já estão fechadas". O trabalho não para. Sobretudo quando o chef não se senta em cima dos resultados.

Feitoria

› Melão impregnado com hibisco e lima ralada

› Salmonete marinado, abacate, tomate e lima-caviar

› Alhos e bugalhos

› Tarte de cogumelos e tutano com lâmina de carne arouquesa

› Serra da Estrela

› Beterraba e framboesas

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