Uma estratégia comum para os povos de língua portuguesa

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Quando me convidaram para tomar a palavra neste encontro partidário (Convenção Nacional do PSD), não hesitei. O tema que sugeri respeita a todos nós, independentemente do posicionamento e eventual filiação partidária. Acresce que sou secretário-geral de uma instituição, a UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa e é nesta qualidade que intervenho, tendo escolhido o tema "Para uma estratégia do desígnio comum dos povos e países de língua oficial portuguesa".

Se bem se reparar, o pragmatismo político vive da moda. O ideário, de causas. Porque a moda é transitória, o pragmatismo não vive para o futuro. É imediatista. Navega à bolina.

O ideário vive.

O desafio que proponho à reflexão é transversal - repito -, respeita a todos e é um desígnio nacional. Ele emerge de causas identitárias próprias, que se diferenciam de cada um dos países europeus que também colonizaram outros territórios.

Um conhecido dirigente da independência de uma ex-colónia portuguesa de África, mestiço, caminhando com um seu camarada negro numa zona então inóspita, viu um cidadão branco.

- Olha, vai ali um estrangeiro - disse.

- Aquele eu conheço. Não é estrangeiro, é português - respondeu o seu camarada.

Esta resposta remete-nos para a memória histórica comum aos povos de língua oficial portuguesa, assumida sem complexos.

Portugal foi o único país europeu que descolonizou após a queda do regime ditatorial anterior. Não é de estranhar que a liberdade e a libertação dos territórios colonizados tivessem sido acelerados por essa queda, com génese na luta comum dos povos e que os capitães de Abril desencadearam.

Antes, bem antes, o grito do Ipiranga dado pelo filho primogénito do rei de Portugal, ao fazer ecoar a frase "eu fico", institucionalizou a independência do Brasil.

Em Portugal, a aprovação da Constituição da República de 1976, que privilegiou o relacionamento com os povos e os países de língua oficial portuguesa e consagrou a defesa de Timor independente, foi semente desse caudal de genuína solidariedade de todos povos e países de língua oficial portuguesa, após os trágicos acontecimentos do massacre de timorenses no cemitério de Díli, contra os poderosos do mundo.

Não é, assim, obra do acaso que a CPLP, comunidade de verdadeiros cidadãos do mundo, viesse a integrar todos os povos e países que adotaram a mesma língua oficial.

Isso não tem paralelo com nenhum outro país europeu que colonizou. Os EUA não fazem parte da Commonwealth e a Alemanha, a Bélgica, a Holanda e a Itália nada têm de semelhante.

A francofonia não é também comparável com a CPLP.

A própria Espanha para prosseguir relações com os países da América Latina fá-lo no quadro das relações ibero-americanas, logo com a participação de Portugal.

Quebrado o ciclo do Império com a adesão de Portugal à União Europeia, foi com naturalidade que os comissários indicados para a 1.ª e para a 2.ª Comissão Europeia para as relações com os países ACP fossem portugueses, no caso o prof. João de Deus Pinheiro e o engº Cardoso e Cunha.

Foi ainda sob a presidência de Portugal na UE que se promoveram as duas primeiras Cimeiras Europa-África (2000 e 2007), tal como foi sob a presidência de Portugal que teve lugar a primeira Cimeira UE-Brasil e se incentivaram as relações com a CPLP.

Mais tarde, Bicesse foi o local das negociações de paz em Angola após a queda do mundo bipolar.

Muitos outros exemplos poderiam ser carreados, como o de o República Popular da China considerar a região administrativa especial de Macau plataforma de cooperação com os povos e países de língua oficial portuguesa, dotando o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China a estes países de uma importante verba de dois mil milhões de dólares.

O quadro descrito mantém-se hoje com esta dimensão política?

Não. É sobre ele que, por isso, devemos refletir, embora com a consciência de que este mundo multipolar já não é mais o mesmo do passado. Não se estará a perder a estratégia em prol do pragmatismo e da navegação à bolina?

O corte de gerações a que se assiste nos nossos países, com a agravante de estarem a desaparecer as bibliotecas de memória que são os homens e mulheres que se formaram política e civicamente nas lutas contra a ditadura, de par com as mudanças geopolíticas a que assistimos após a queda do mundo bipolar, não ajuda. Muito menos a ausência de uma ação pedagógica para colmatar estes constrangimentos.

Seja como for, a afirmação coletiva dos povos e países de língua oficial portuguesa é a mais importante mais-valia que a todos e a cada um aproveita, alicerçada em afetos e interesses.

Com a globalização, o mundo bipolar esfumou-se e o unipolar que se lhe seguiu também, vivendo-se agora sob o signo da multipolaridade.

Se esta é uma nova realidade - e é -, devemos ter presente que os povos e países da CPLP têm poderosos instrumentos para fazer reforçar esta mais-valia de afirmação externa assumindo-a como desafio comum. Na verdade:

Eles falam a quarta língua mais falada do mundo, utilizada como instrumento de trabalho em 32 organizações internacionais, sendo a primeira língua do Atlântico Sul, a terceira nas redes sociais e na UE, com um peso assim não negligenciável à escala global, sabendo-se que a língua é hoje um instrumento económico.

Todos fazem fronteira com o mar, com extensas zonas económicas exclusivas, sendo portas de entrada por via marítima para os continentes em que se integram ou para importantes regiões destas. Portugal é o país continental europeu mais próximo das Américas (do Norte, Centro e Sul), sendo a via marítima a que tem maior peso nas relações comerciais internacionais.

No conjunto detêm cerca 13,5% da água potável do mundo, 5,9% da terra arável, 3,7% da população mundial e contribuem com 3,9% para o comércio mundial.

O singular cruzamento secular de culturas com uma conceção universalista comum tem tradução na invulgar dimensão qualitativa da música, com raízes euro-africanas que também se expressam na literatura, na gastronomia ou na língua crioula, esta também filha de encontros e desencontros.

A luta comum dos povos contra o regime colonial anterior, em prol da liberdade e pela independência, forjou solidariedades e consolidou afetos e interesses do maior alcance, alimentando sonhos, que, como diz o poeta "comandam a vida", infelizmente hoje sacrificados às economias de casino.

Estes pontos muito fortes são alicerces que podem solidificar o futuro, que não as navegações políticas à bolina. Não foi este legado que nos deixaram os verdadeiros gigantes, sobretudo das primeira e segunda dinastias portuguesas, ao conceberam uma estratégia de futuro que um país de média dimensão europeia, com poucos recursos e com apenas um milhão de habitantes, ousasse por mar nunca antes navegados?

Não há que renegar a história e menos ter complexos dela.

Ao pensarmos uma estratégia de futuro, não podemos, nem devemos, meter a cabeça debaixo da areia sem atender à outra face da moeda que lhe é indissociável dos acima referidos constrangimentos. Sucede que hoje o futuro de cada um dos nossos povos e países tem tanto mais a ganhar neste mundo global quanto mais aprofundar e reforçar a mais-valia de que todos são portadores, colocando a fasquia mais alta, sem pensar pequenino, nem ceder a princípios.

O que se tem esbanjado em taticismo politico e pragmatismo faz, porém, escassear a estratégia que a intervenção da troika acentuou, enfraquecendo neste domínio concreto a orgânica institucional das respostas, debilitando instrumentos económicos de soberania, desrespeitando princípios e descredibilizando, aqui e além, a própria política que devia e deve estar no comando e com ela os políticos.

A questão que mobilizou um debate recentemente em Portugal, sobre se as relações internacionais e a posição dos tribunais e do Estado nelas, não podem nem devem conduzir à subalternização do papel do Estado.

Não está em causa o reconhecimento de que os tribunais são órgãos de soberania, mas não são eles que têm funções soberanas na definição da política externa do Estado.

Do mesmo passo, a solução salomónica que se concretizou com a cedência do secretariado executivo a outro país da CPLP, no caso São Tomé e Príncipe, só assumido por Portugal após este período e ainda assim com um mandato também por dois anos, é dificilmente compreensível. Não é apenas a diminuição do mandato de quatro para dois anos, já de si grave, sem nenhuma vantagem visível que está em causa para quem quer que seja. A gravidade consistiu, na prática, em ter-se rasgado num tratado internacional, ofendendo-se regras e princípios nele consagrados e para todos os Estados vinculativos.

A transigência dos princípios havia já conduzido, aliás sem um debate público mínimo, ao alargamento a mais um país aos fundadores da CPLP, no caso a Guiné Equatorial. Convém que se refira que na luta anticolonial, os movimentos e partidos que se opuseram ao regime deposto, em 25 de abril de 1974, ao criarem a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), tiveram a mesma lógica que preside à criação da CPLP, de fazer incluir e manter apenas os territórios africanos colonizados com uma identidade e uma língua de facto comuns.

No que respeita a Portugal, não se deve deixar de realçar ainda a grave e pouco patriótica imponderação da decisão sobre soluções económicas que vieram a ser adotadas, em particular com a venda ao estrangeiro da quase totalidade das empresas estratégicas nacionais (salvo as águas), a distribuição postal, os aeroportos, a energia, a distribuição desta e as telecomunicações, para não falar na banca e nas empresas seguradoras, opções que decapitaram do nosso domínio alavancas importantes da cooperação com os povos nossos irmãos, enfraquecendo o nosso posicionamento neste mundo global.

Portugal teve cerca de 90% do domínio nacional da banca e quase o mesmo nas empresas seguradoras, e agora detém cerca de 8%. Como se assegura agora o financiamento para a cooperação com recursos próprios? Havia necessidade de ir tão longe se fosse ponderada a salvaguarda dessas empresas, indispensáveis para a cooperação e a afirmação no mundo?

Os demais países europeus procederam desta forma?

A resposta é óbvia. A questão respeita a desígnios nacionais e à forma de os promover. É de relevar que o memorando da troika previu cerca de cinco mil milhões de euros de receitas com as privatizações, mas chegou-se quase ao triplo. Fomos de facto mais papistas do que o Papa.

Devemos refletir seriamente sobre o que conduziu aos exemplos refletidos para que não repitamos situações como a descrita e avaliemos a forma de a revertermos.

Ainda vamos a tempo?

O quadro das relações com os povos e países lusófonos está, porém, muito longe de estar em causa, sendo necessário para isso que se congregum esforços para a consensualização dos objetivos a prosseguir para uma estratégia comum sem tabus nem preconceitos.

É necessário que se reflita e leve em linha de conta:

- a dinamização de uma articulação da CPLP (que é prosseguida no essencial pelos órgãos de soberania dos países que a integram) com as políticas de cooperação do poder autárquico da sociedade civil, mais próximas dos cidadãos para que estes sintam a sua utilidade prática. Ele deve ter presente que, dentro de escassos anos, nas cidades residirá cerca de 70% da humanidade;

- o reforço da valorização do intercâmbio das culturas desses povos e países em todos os domínios, com simplificação de vistos para artistas, escritores e demais agentes dela, estendendo-se a docentes e investigadores universitários e implementando ainda um modelo adequado para estudantes universitários, iniciando-se assim um caminho realista de mobilidade;

- a valorização dos objetivos articulados que precedem junto dos espaços económicos e políticos supranacionais, em que cada um dos países se insere e no que respeita à UE, Portugal deve reganhar o estatuto de país interlocutor dela com África e o Brasil, agora ainda mais sentido com o que ocorreu com o Brexit e as suas consequências;

- a conceção de uma estratégia diplomática comum de acrescida sensibilização junto dos governantes brasileiros para que a importância da CPLP e pelo que este país representa por si só à escala global;

- o privilegiamento, no quadro da entreajuda por Portugal nas relações bilaterais e multilaterais, políticas de cooperação na saúde e na educação, avaliando a forma e os termos do contributo de profissionais destes setores que são por excelência também veículos de afirmação da língua portuguesa, bem como a ação das PME face à decapitação das empresas estratégicas sob domínio nacional;

- o reforço da disponibilização do invulgar acervo de conhecimento documental e de experiência dos países africanos de língua oficial portuguesa, existente em instituições portuguesas;

- a convergência para que técnicos habilitados nos domínios da agricultura, da agropecuária e das pescas concorram para a recriação do setor primário nos países africanos de língua oficial portuguesa, tão indispensáveis à autossuficiência;

- a necessidade de consciencializar as instâncias internacionais para o papel que podem e devem ter os países lusófonos na defesa do Atlântico Sul. Por outras palavras - é urgente recriarmos neste domínio a Política com P grande.

Este é mesmo, como se vê, um desígnio nacional.

Para o concretizarmos de forma consequente, há que ter os pés bem assentes na terra e tudo fazer para a consensualização de objetivos, de par com a articulação de todos os instrumentos existentes para eles, não desperdiçando esforços. Sabendo generalizar o que invoquei no início desta intervenção, na voz do mestiço angolano, que é o de considerarmos de facto os povos de língua oficial portuguesa como não sendo estrangeiros. Aliás, não podemos desejar com uma mão deles o que negamos com a outra. É fácil? Não! Não é fácil, mas é o único caminho.

Secretário-geral da UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa. Texto apresentado na Convenção Nacional do PSD.

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