Uma estranha amizade 

Publicado a
Atualizado a

O livro de Maria Filomena Mónica Uma Estranha Amizade (Relógio de Água, 2021) teve o Prémio do Grémio Literário para a melhor obra publicada este ano sobre temas do século XIX. Este último livro de Maria Filomena Mónica apresenta, na esteira da biografia de Eça que esta autora escreveu, uma inteligente e bem documentada análise da relação pessoal e literária dessas duas grandes figuras das nossas letras que são Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.

A dupla Eça e Ramalho apresenta-nos sem dúvida uma forte e inegável amizade, com todas as ambiguidades, reservas e ciúmes que hoje conhecemos, mas que perdurou pela vida fora, enquanto a sua obra em comum se pode resumir a uma novela escrita a dois por desfastio, O Mistério da Estrada de Sintra, e a elaboração conjunta, durante dois anos, de um importante acervo de artigos críticos e polémicos, As Farpas, dos quais, porém, Eça se quis demarcar, ao recusar anos mais tarde vir publicar os seus artigos em conjunto com os do amigo, preferindo editar os seus contributos à parte, cortados e alterados, sob o título Uma Campanha Alegre.

Amigos de juventude, Eça e Ramalho têm olhares diferentes sobre os seus anos de formação e perspetivas distintas sobre a importância de um na evolução intelectual e literária do outro. Tal é bem visível no artigo que em 1878 Eça escreve em Newcastle sobre o perfil do amigo, e que foi mais tarde republicado nas Notas Contemporâneas: Ramalho só emerge da sua pobre descrição do que era "antes das Farpas" ("janota"; "deslumbrado"; "conservador"; "S Paulo do crevetismo"; "purista, arcaico, obsoleto"; "ideias de dandy, prosa de frade"), só sai deste confrangedor retrato, qual o mesmo S. Paulo na estrada de Damasco... ao escrever, com Eça, as Farpas! E a partir desse momento, Ramalho é um homem novo e a partir desses parágrafos pode o texto de Eça expandir-se de forma solta em louvores e amizade. Eça considerava que ajudara a fazer nascer o novo Ramalho!

Mas é outra a visão de Ramalho da sua relação com Eça. Por ocasião da morte deste, Ramalho escreve em carta particular ao conde de Sabugosa, que sem dúvida "eu devo muito a Queiroz(...) por isso o amo como a um pai"; "mas a amigos como você(...) eu posso enternecidamente acrescentar que Queiroz, entrando na vida pelo meu braço, alguma coisa me deveu também"(...); "e é por esta razão, por esta secreta razão (...) que além de amar Queiroz como se fosse um pai eu o amava também (...) como se fosse um filho".

Penso que as ambiguidades e reservas que se têm vindo a encontrar no comportamento de Ramalho para com Eça arrancam desse ciúme da parte do mais velho em relação ao mais novo, que acompanhava a sua amizade, sem contudo a desfazer.

As declarações de estima recíproca sucedem-se, a relação não conhece sobressaltos de marca e o nosso juízo atual sobre a pomposidade e pretensiosismo de Ramalho seria sem dúvida partilhado por Eça (como vimos), mas nunca se quebraram os laços entre eles. Ramalho, por seu lado, tem uma atitude de um egoísmo que nos choca, ao continuar impávido a sua excursão a Itália depois de saber da morte de Eça; mas julgo que o próprio Eça não esperaria mais do seu amigo - e nem a sua viúva ficou escandalizada!

O que realmente não podemos perdoar a Ramalho é ele ter abandonado uma caixa de inéditos preciosos de Eça, que lhe foi confiada pela família para edição, e que só após a sua morte o filho teve a correção de devolver ao filho de Eça de Queiroz. E o que estava na caixa não era pouco: O Conde de Abranhos, A Capital, algumas cartas inéditas de Fradique Mendes, O Egipto... Tudo considerado de escasso interesse por Ramalho, exausto que estava com a revisão que fizera de A Cidade e as Serras!

Tal como o castigo terrível que ressoa como maldição no poema de Jorge de Sena Camões dirige-se aos seus contemporâneos (e mesmo será tido por meu, contado por meu aquilo que só por vós haveríeis feito), o castigo póstumo de Ramalho foi que tudo aquilo que estes opúsculos, escritos a dois, trouxeram à crítica impiedosa da monarquia constitucional em Portugal e à visão que ainda hoje todos temos desse período foi absorvido irremediavelmente pelo génio e pela obra superior de Eça. Ainda assim, tudo visto e ponderado, não é perda de tempo nenhuma lermos hoje Ramalho Ortigão...

Diplomata e escritor

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt