Uma espécie de fadismo
O livro começa assim: "Hoje, a maior parte das pessoas pensa pertencer a uma espécie que é dona do seu destino. Isto é fé, não é ciência. Ninguém fala de um tempo em que as baleias ou os gorilas serão donos dos seus destinos. Porquê, então, os humanos?"
John Gray in Straw Dogs.
Os grandes filósofos lembram-me os grandes compositores da música clássica. Como eles, são quase sempre grandes virtuosos, uma espécie de atletas do pensamento dotados de uma facilidade de raciocínio que impressiona e lembra a de outros artistas. Têm o domínio da lógica como os atletas têm do corpo e os pintores (quando os havia) do traço e a da luz. São prodígios, como Mozart era um prodígio, seres que desde pequenos parecem dominar, sem esforço, as linguagens em que se exprimem.
John Gray é filósofo e a sua obra é um conjunto de concertos e sinfonias pessimistas. Exatamente o que este tempo pede.
Straw Dogs será, talvez, o seu opus magnum. É uma obra a que volto regularmente, pelo menos com a mesma regularidade com que há atentados e bombistas suicidas, conflitos entre países, etnias e seitas religiosas, colapsos financeiros, embustes e roubos pela parte de grandes empresários e empresas e catástrofes naturais - causadas pelo cada vez mais do que óbvio impacto ambiental das atividades da espécie - e desgraças em geral. E, claro, quando há mudanças de governo e chegam ao poder, carregados de esperança, novos líderes com a promessa de que agora é que vai ser, que agora é que vamos tomar o destino nas nossas mãos.
A obra é uma crítica à ideia de vontade e livre-arbítrio e ao humanismo que ele, virtuosamente, demonstra ser apenas uma versão secular do cristianismo. Mais uma ilusão na história do pensamento, que é uma história de alucinações intelectuais. Gray expõe as falhas, os vícios e as ilusões que vislumbra nos raciocínios dos grandes filósofos tornando-os tão datados como Haydn e Mozart tornaram datado o barroco.
"Humanismo pode querer significar muitas coisas, mas para nós significa uma crença no progresso. Acreditar no progresso é acreditar que pela utilização dos novos poderes trazidos pelo crescente conhecimento científico os humanos se conseguem libertar a si mesmos dos limites que emolduram as vidas dos outros animais. Esta é a esperança de quase toda a gente nos dias que correm, mas é uma esperança infundada. Porque embora seja muito provável que o conhecimento humano continue a crescer, e com ele o seu poder, o animal humano continuará o mesmo: uma espécie altamente inventiva que é também uma das mais predadoras e destrutivas.
Darwin mostrou-nos que os humanos são como os outros animais, os humanistas alegam que não são. E dizem que utilizando o conhecimento humano conseguiremos controlar o ambiente e florescer como nunca. Ao afirmá-lo, renovam uma das mais dúbias promessas do cristianismo - que a salvação está ao alcance de todos."
A obra não é difícil de ler, mas não é fácil de apreender, porque é difícil viver o pessimismo como uma força motivadora; é difícil sair da caverna onde nos sentimos confortáveis e onde tomamos a sombra que a luz projeta na parede, e que se assemelha a nós próprios, por um vislumbre de deus.
Fomos todos educados na fé no progresso, na ideia de que o homem, com o seu infinito engenho e capacidade intelectual, há de conseguir vencer a tragédia, a natureza e a morte. Somos crentes na mudança, no progresso, no fazer melhor, no mudar as coisas. Somos devotos da ação, como se estar parado fosse um dos pecados mortais.
Agora que, segundo muitos sábios, estamos perto de atingir um novo teto no desenvolvimento social e que no horizonte se alinham, como sempre se alinharam, novas utopias, novas versões dos mesmos ideais baseados na crença que somos animais especiais donos do nosso destino - quando, em boa verdade, somos apenas animais que se julgam deuses -, é boa altura para ler o Straw Dogs. Talvez porque a sua grande conclusão, pequena para alguns, é a de que não há salvação. Somos o que somos. Não há como escapar da nossa natureza. É uma espécie de fadismo.
Já perto do fim, Gray escreve:
"Hoje, uma vida boa significa fazer pleno uso da ciência e da tecnologia - sem sucumbir à ilusão de que elas nos tornarão livres, razoáveis ou mesmo sãos. Significa procurar a paz - sem a esperança num mundo sem guerra. Significa acarinhar a liberdade - sabendo que ela é apenas um intervalo entre a anarquia e a tirania."
Para mim chega.