Uma escolha muito fácil

Publicado a
Atualizado a

Volta e meia, um editorial de há três anos do jornal O Estado de S. Paulo é alvo de chacota no Brasil. "Uma escolha muito difícil", titulava o conservador broadsheet paulistano numa primeira página na ressaca da primeira volta das eleições presidenciais que apurara Jair Bolsonaro e Fernando Haddad para o turno final.

A escolha difícil, segundo o Estadão, era entre um candidato que passou a vida pública no exército, do qual foi expulso com o carimbo de "mau militar", veredicto de um general ex-presidente da República, e na política, onde em três décadas como deputado aprovara dois projetos.

Homofóbico assumido mas racista dissimulado, fã de torturadores às claras mas adepto de nazis às escondidas, antes de se aventurar na corrida ao Planalto restringia a sua ação mediática a programas de variedades onde garantia que os seus filhos, por serem bem-educados, jamais se casariam com uma preta, jurava preferir ver um descendente seu morto num acidente de carro a aparecer casado com um homem ou declarava que o maior defeito da ditadura militar brasileira tinha sido matar pouca gente.

E entre um candidato bacharel em Direito, mestre em Economia e doutor em Filosofia pela melhor universidade da América Latina, ministro da Educação em três governos, criador do ProUni, projeto que permitiu a 1,2 milhões de brasileiros carentes chegar a instituições privadas de ensino superior, e por quatro anos prefeito da maior cidade brasileira.

Como qualquer político em qualquer ponto do mundo, o percurso de Haddad, quadro de um partido com pesadas culpas no cartório no Petrolão, não era isento de erros e falhas. No entanto, o foco da "escolha difícil" jamais poderia estar sobre ele mas sobre quem confundia "família" com milícia, "pátria" com tiros e "Deus" com o diabo.

Podem alegar os editorialistas do Estadão que à época do texto não se sabia que, perante uma pandemia, Bolsonaro diminuiria a doença - "uma gripezinha" -, desdenharia da cura - "vacina transforma gente em jacaré" - e relativizaria os (já são 600 mil) compatriotas mortos - "eu não sou coveiro".

Ou que não desconfiavam que, à primeira notícia incómoda, o presidente ameaçaria tirar o jornal de circulação e chamaria os seus repórteres de "jumentos".

E que escolheria um analfabeto para a Educação, um ignorante para a Cultura, um piromaníaco para as Relações Exteriores, um desmatador para o Ambiente, um paraquedista para a Saúde, um militar para a Casa Civil, um racista para a fundação de apoio à Cultura Afro-brasileira e até, soube-se na última semana, um proprietário de offshores nas Ilhas Virgens Britânicas que enriquece milhões sempre que o real desvaloriza para cuidar da Economia.

Nem que um ano e meio após o editorial, Sergio Moro, ministro da Justiça, sairia do governo a acusar Bolsonaro de aparelhar a polícia para salvar os filhos criminosos. Por falar no ex-juiz, os editorialistas também desconheciam, à época, que a Suprema Corte do país o declararia "parcial" por "conluio com a acusação" e "contaminação da sentença" de Lula da Silva, o patrocinador da candidatura de Haddad.

Três anos depois, o Estadão tem todo o direito de continuar a fazer os possíveis pelo surgimento de uma opção alternativa a Lula e Bolsonaro, como em 2018. Mas, caso sobrem os dois na segunda volta, tem o dever de saber que entre civilização e barbárie a escolha tem de ser fácil, muito fácil.

Jornalista, correspondente em São Paulo

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt