Uma economista que se encantou pelo negócio da canábis
As plantas do Selllva (assim mesmo, com três L), a chegar ao Marquês de Pombal, são diferentes daquelas de que Joana Ferraz da Costa faz vida. O projeto da FAI Therapeutics, nova empresa do grupo farmacêutico do pai - de quem traz a inteligência no olhar e o jeito nos negócios - baseia-se na canábis medicinal e propõe tratá-la "da semente ao doente", graças à experiência e contribuição aportada por três outras companhias de estrutura familiar: Agrovete, Iberfar e Ferraz Lynce. E ainda que esteja hoje longe do que aprendeu no curso de Economia da Católica e no mestrado em Econometria que lhe garantiu uma posição no IGCP, onde fez carreira, não parece estar fora da sua zona de conforto. Em vésperas de chegar ao 43 anos, é uma mulher habituada a quebrar barreiras e a assumir as próprias escolhas - razão pela qual só agora se juntou às empresas da família e apenas porque lhe foi proposto que assumisse um desafio no mínimo disruptivo: assumir as rédeas de um negócio que está a dar os primeiros passos no país e que, apesar de ter imenso potencial, traz também inúmeras dificuldades, como é próprio daquilo que é ainda maioritariamente novo.
À mesa do Selllva, o sorriso vai-se-lhe abrindo conforme me guia pela sua vida, embalada pelo capuccino que casa com as panquecas regadas com doce de frutos vermelhos e manteiga de amendoim. Ri-se ao concluir que nem sempre é bom parecer muito mais nova do que é - ainda que já comece a gostar dessa ideia. "Chegou-me a acontecer, nos primeiros dias do IGCP, acharem que eu estava ali porque era filha de alguém; eu tinha pouco mais de 20 anos e estava a trabalhar lá, mas cheguei a pensar que se calhar não me levavam a sério..."
Conta outro episódio, nos primeiros dias de aulas que deu, também na Católica, ainda antes de entrar para a agência que gere a dívida nacional, em que os alunos a tomaram por colega, não professora. Nada que a traumatizasse por muito tempo - a tranquilidade que lhe marca a personalidade não se compadece com sobressaltos infrutíferos e Joana sempre foi capaz de encarar os desafios que a vida lhe trouxe. Fosse o de se afirmar profissionalmente numa área extremamente rigorosa fosse o de levar a termo uma gravidez a meio da licenciatura em Economia e fazer um mestrado que poucos se atreveriam a tentar enquanto cuidava de um recém-nascido e se estreava na vida de casada.
A canábis foi ideia do pai, Pedro Ferraz da Costa, sobejamente conhecido empresário português, membro da CIP e presidente do Fórum para a Competitividade. "O meu pai está sempre a pensar em novos negócios, sempre um passo à frente, é muito inovador e até se cansa do que é tradicional", conta-me Joana, que se viu, em 2019, desanimada pela estagnação a que a sua carreira no IGCP chegara. Quando se abria uma oportunidade, a instituição optava por ir buscar fora - e calhava aos que lá estavam há mais tempo a tarefa de ensinar procedimentos aos novos líderes de equipa, o que era desmotivador, no mínimo. Joana garante, porém, que foi muito feliz nos seus oito anos de IGCP. "Aprendi imenso, até porque estive lá nos anos da troika, o que foi um desafio incrível, apanhei pessoas fantásticas, como o João Moreira Rato, todos os dias havia coisas novas para fazer, desafios... Adorei a experiência e ainda mais pela oportunidade de exercer aquilo em que me licenciei, que não é coisa de que muitos economistas se possam gabar."
Até ao dia em que, sem ver progressão na carreira, começou a pesar na vida. "Estava a ponderar o que queria fazer, pensei tirar um doutoramento e foi nessa altura que o meu pai me desafiou para um novo projeto no grupo." A canábis medicinal tinha acabado de ser legislada em Portugal e o grupo de Ferraz da Costa, com uma empresa no setor agrícola, outra no ramo industrial e uma comercializadora de medicamentos, tinha todas as condições para se posicionar, controlando o processo desde a plantação até à venda do produto final, passando pela sua transformação.
A ideia materializou-se rapidamente e se tudo isto aconteceu há não muito tempo o trabalho intenso - com uma pandemia pelo meio a dificultar ainda mais os tradicionais avanços e recuos deste tipo de processos, para mais numa área totalmente inovadora - dá a Joana a ideia de que foi "há uma eternidade". Da complexidade, não se queixa muito. "Entende-se, que seja um processo muito burocrático, é uma questão de segurança, e o Infarmed tem feito um controlo apertadíssimo", diz.
Já com 5,5 hectares plantados em Serpa e trabalhados sobretudo por mulheres da zona, com cerca de 50 anos, conseguiu neste primeiro ano duas colheitas, fazendo transporte diário dos contentores, onde a planta era conservada, para a Iberfar, onde se testou o processo inovador de extração da substância a frio (menos poluente do que o etanol e mais vantajoso do que a extração crítica) que vai ser aplicado à produção. A obra dessa nova fábrica de extração atrasou-se - sobretudo por falta de pessoal e atrasos na entrega de materiais, o filme de terror que bem conhecem praticamente todas as empresas do país na atual conjuntura -, mas as plantas estão conservadas congeladas, de forma a manterem todas as propriedades até seguirem para a extração, algo que Joana acredita que pode acontecer até ao final do ano. Mesmo então, ainda há passos a dar - fazer a formulação, testá-la, garantir a autorização de entrada no mercado e a autorização de introdução no mercado, que lhe permitirá exportar para a Europa, o principal objetivo da empresa. "Dor e minimização de efeitos secundários da quimioterapia são o nosso foco para o produto final", revela, confessando a expectativa de ter a empresa a andar a todo o vapor no ano em que a Ferraz Lynce faz 100 anos, 2024. Um caminho que já implicou um investimento que excede 1 milhão de euros.
Para quem toda a vida trabalhou em economia e viveu no universo teórico dos modelos de taxas de juros e outras complexidades afins, "ver um produto nascer é incrível", confessa, com entusiasmo, revelando que a carreira no IGCP está definitivamente arrumada no arquivo. E como é que alguém que fez uma tese de mestrado em saldos orçamentais ajustados aos ciclos económicos vê a atual crise? "É um susto... e não é", diz-me, apontando a recuperação dos juros a valores positivos e lembrando como se tornou impossível fazer previsões a longo prazo com séries negativas, uma aberração que torna inaplicáveis todas as variáveis. "Há portanto um regresso a alguma normalidade", diz, ainda que tenha dúvidas de que retirar poder de compra às pessoas com a subida dos juros possa controlar uma inflação que está no lado da oferta, não da procura. "É um período complicado", resume.
Nada a que Joana Ferraz da Costa seja estranha: afinal, fez todo o processo de constituição da FAI Therapeutics em plena pandemia, o que implicou, por exemplo, vistorias virtuais às plantações. "Era o especialista no campo agarrado a um iPad, com a rede sempre a cair... uma coisa surreal", recorda, entre gargalhadas.
Terceira de quatro irmãs (a mais velha tem 57 anos, a mais nova 38), Joana cresceu em Lisboa e garante que nunca reconheceu no pai ansiedade para que tomassem conta dos negócios da família - ainda que todas estejam hoje a ele ligadas. "A minha avó, sim, gostava de perguntar sobre a farmácia onde trabalhara, lembrava-se e contava imensas histórias. Com o meu pai conversava muito mais sobre economia, os desafios da CIP e do Fórum."
Passou pelo Nosso Jardim, mas foi nas Escravas, onde esteve dos 6 anos até ao 9.º ano, que fez amigas para a vida e de onde guarda as memórias mais quentes da sua infância. "Eu achava que andar num colégio só de raparigas me tinha prejudicado imenso, era tímida... ainda por cima em casa também eram só raparigas! Mas hoje vejo que foram dos melhores tempos que vivi." Dali saiu para o Rainha D. Amélia, onde fez o liceu, e entrou depois para a Católica. E adorou todo o percurso. Mesmo aqueles anos mais difíceis. "Lembro-me de estar a fazer os exames do 3.º ano de Economia com um barrigão que quase não me deixava chegar à mesa", ri-se. "Tinha 20 anos e foi um desafio - houve alturas em que tive alguma vergonha, mas correu tudo bem e consegui organizar-me levando só mais um semestre a terminar, com boas notas e sem deixar de ser eu a tratar do meu filho."
Foi numas férias, passadas como sempre na Praia Grande, que conheceu David Roldão, com quem casou aos 20 anos e só desistiram desse hábito quando passaram um mês de férias com Afonso ainda bebé e só tiveram três dias de sol. Agora, é no Algarve que passam o verão, com o filho e as "duas teenagers" que tem casa, Francisca, de 17 anos, e Marta, de 13. Mas o sonho de Joana Ferraz da Costa está mais perto, ainda que também para sul. "Não tenho nenhum hobby tipo olaria", ri-se, "mas habituei-me a gostar de passear o cão todas as noites: é um momento em que aproveitamos para conversar, agora que os miúdos já estão crescidos. Não penso muito no futuro desligado dos negócios, mas gostava de viver no campo, um dia. Sem desligar das empresas, mas gerindo à distância, com uma visão mais macro, um papel diferente. Talvez gostasse de nessa altura viver na casa que temos em Troia", diz, mais para si do que para mim, antes de assumir que sempre tem um sonho: "Gostava de voltar a dar aulas."